sábado, 6 de junho de 2009

Sono

Toda noite dormida é a morte de um estado. É um reset do computador. A consciência frágil, que mal suporta a continuidade durante a vida desperta, fraqueja fragorosamente durante o sono. Acordo outro, instrumento desafinado, máquina fria. Essa sobrevida sonâmbula que levo nas madrugadas diante da tela, cansado demais para pensar, disperso demais para manter uma atividade é o esperneio desesperado de uma personalidade moribunda. Quando durmo mudo, acordo sem saber quem eu sou, o que desejo, quais meus objetivos, qual meu humor, qual meu caráter. Até a hora de dormir de novo vou me inventando, para depois, exausto, me apagar novamente. Não me lembro o que eu queria ser a uns instantes atrás, não me lembro o que achava repugnante e impraticável. Admiração e ódio trocam de lugar sem eu saber, sem eu sentir. Não posso dormir, não posso, se não serei enganado.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Central do Brasil

Às vezes eu penso que uma vida comum é tudo que eu preciso para ser feliz. Uma casa no subúrbio, um dia de trabalho cansativo e uma esposa me esperando a noite para amainar minhas dores. Trataria um prato de comida como um milagre e um beijo amoroso como uma dádiva. Mas quando passo na Central eu vejo o avesso da minha fantasia. Nenhum daqueles rostos me parece feliz, nenhum satisfeito ou sereno. Antigamente, não compartilhar dessa ilusão de uma vida comum e feliz fazia com que eu me sentisse superior a toda essa gente circulando feito zumbis. Agora, atestar a inexistência da minha fantasia no olhar abatido deste gado humano não me faz sentir muito melhor que eles.
A sobriedade de uma vida sem ilusões tambem já foi meu analgésico. Encarar com dignidade minha condição coletiva, meu sacrifício compartilhado no meio desse povo massacrado. Ser um deles sem me sentir especial por estar em uma fantasia de mediocridade satisfatória, de alegria caseira. Não buscar uma fuga pra minha miséria. Me sentir especial por não ser especial, por ser mais um pedaço de carne sendo transportado de um lado para o outro nessas máquinas enormes e infernais com cheiro de óleo queimado. Me sentir digno por, desiludido, compartilhar dessa tragédia coletiva.
Mas não hoje. Hoje as fantasias de felicidade caseira estão em falta, e o sentimento romântico de superioridade por minha desilusão solitária se perde na memória do passado. Nem minha dignidade de massacrado, de quem teve sua individualidade extirpada, usurpado como todos os trabalhadores, coletivizado forçadamente pelas circunstâncias do mundo - nem essa dignidade me resta hoje. Não, não hoje. Hoje são eles que olham dentro de mim e não vêem nada. Hoje o zumbi sou eu.

São 5 horas e 47 minutos da manhã no relógio da Central, meu trem está prestes a partir e o dia só está começando.