segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Os seus sapatos o denunciavam. Óbviamente não pertenciam a ele. E não por acaso eles eram o que havia de mais próximo da terra – aquele tudo que não era dele. A terra era verde e a sola era marrom de couro. A lama negra unia os dois fazendo um contínuo do seu corpo com o chão.

Solidão. Do tipo que apenas uma árvore pode experimentar. Solidão e silêncio precederam sua fusão com o chão. Afundava sem perceber; a lama já alcançava sua canela. Já não tinha mais sapatos, mas sim grama até os joelhos. N’olhar a luz refletia. O sol não incomodava mais suas retinas, retumbava no fundo do crânio – caixa oca. Casca oca.

– Hora do remédio, 2212!

Seu olhar despertou e fitou sem expressão a mulher de branco que lhe estendia uma cápsula metade vermelha, metade azul. Olhou para a mão estendida. Tornou a olhar para o rosto sem vida da estátua de touca. A cápsula foi atirada em sua boca seguida de uma enxurrada de água. Sentiu sono, deitou-se.

Seu corpo foi carregado até seu quarto e devidamente atado à cama. Temiam que durante a noite, em momento de descontração trazido pelo sono, seu espírito flutuasse e vagasse pela aí. Era sabido de todos os residentes que durante o dia ele era árvore e que à noite se transmutava em pássaro.

De novo o sapato, de novo a terra, de novo o couro, de novo a grama, de novo a lama. Depois pássaro engaiolado. E assim sucessivamente os dois estados se revezavam. Dia após dia, após noite, após dia. Se ao menos pudesse tocar a terra com a planta dos seus pés descalços. Mas não sabia desfazer os nós dos seus sapatos – principalmente pelo fato de que aqueles sapatos não eram seus. Não pertenciam a ele.

Um dia ele engasgou e cuspiu. Denovo. Engasgo e cuspe. Denovo, dessa vez com força, tampam-lhe a boca. Vômito. Tudo de volta de seu estômago e garganta. A capsula azul e vermelha não descia. Não tinha culpa, tinha sido um nó na sua garganta. Um nó que ele não tinha feito e por isso não saberia desfazer. Injeção, no seu braço, na sua veia. Pronto, passou, veio o sono deitou-se e dormiu. Foi atado à cama para não voar.

Noutro dia outro nó. Nem tentaram desfazê-lo a força, usaram logo a injeção. Sentiu sono, dormiu. Mas seu corpo deu um nó, os membros se contorceram, tornaram-se rijos. Sentia muita dor no estômago, mas não conseguia acordar. Ninguém conseguia amarrá-lo à cama por causa da posição dos seus membros enroscados. Não conseguia desfazer o nó, não tinha sido feito por ele, mas sim pela dor. De repente parou, ele relaxou e se esticou. A dor foi substituída por um calor aconchegante que subiu do estômago para sua cabeça e se espalhou pelos membros que relaxaram.

Dormiu relaxado, o melhor sono de sua vida. Não foi necessário amarrá-lo dessa vez. Em vez disso o colocaram em uma caixa e colocaram a caixa de baixo da terra. Fazia sol, mas ele ainda dormia. Sem árvore hoje, apenas pássaro ainda. Ele queria assoviar, é isso que fazem os pássaros, mas não havia ar na caixa nem espaço. Ele não conseguia abrir a caixa, por que não havia sido fechada por ele.

Olhou para baixo, viu seus sapatos e sentiu tristeza por que não eram dele. Tinha muito o que caminhar, sentiu preguiça porque não queria caminhar. Queria afundar no chão como fazia antigamente. Mas não podia afundar por que seus sapatos estavam amarrados de maneira errada. Estavam amarrados um no outro e como não havia sido ele que tinha feito esse nó teria de esperar que viessem os homens com machados para cortá-lo.

Fechou os olhos e virou um pássaro.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O tempo já não passa mais como quando era nós dois
Os dias se arrastam nas cenas do cotidiano
E termina mesmo antes de começar de novo, um outro
Depois, não quero mais perder
Depois, não quero esquecer
o depois que depois não vai mais ser
Nem eu, nem você