domingo, 29 de novembro de 2009

As palavras são outras.

De repente ouviu-se todas as palavras do mundo de uma só vez, em um silêncio estrondoso. Eram também todas as vozes, e soavam como a nota final de um concerto - em um pequeno instante, um "ão". Acordou assustado e tentou correr para salvar alguma coisa diante da máquina de escrever, mas foi tarde, escorreu tudo de uma vez - balde d'água inesperado. Estranhava que não houvesse palavra longa ou curta, vozes ou fonemas agudos e graves, era tudo assim, um grande "ão" disfônico porém em unísono.

O mundo continuou em silêncio depois disso, o gato na lata de lixo, o caderno repousado sobre a mesa.

Marcia

Marcia foi um sonho bom que acabou em Março.
Ele saía todos os dias para trabalhar, quase de madrugada. Pegava um ônibus e um trem, viajava horas. E não voltava mais. De noite em casa tentava ficar acordado o máximo possível por que sabia que se dormisse, não voltaria mais.
No trabalho às vezes era sonâmbulo e às vezes desperto e violento, mas quando saía de lá, não voltava mais. Falava pouco, e os colegas de trabalho pouco o conheciam, só tinham a certeza de que estaria lá no dia seguinte por que ele nunca faltava ou se atrasava. Ele era assim por que sabia que nunca voltaria.
Com os amigos era diferente, mas pouco os via. Não costumava retornar ligações, e quando os encotrava conversava efusivamente ou calava-se encarando-os como estranhos. Os amigos diziam “um dia ele vai embora, e nunca mais vai voltar”. Mas ele sempre voltava, ele sempre estava lá.
Sentiu-se especial certa vez, pensou que poderia ser quem quisesse, qualquer um e todos. De rosto branco com pó e maquilagem encenava coisas que não viraram peças. Pediu um violão para fazer músicas e elas eram simples e suaves, pareciam nem existir. Nunca existiram.
Não gostava de aprender coisas, pensava que iriam contaminá-lo. Queria manter sua mente pura e limpa para criar. Tudo que se aproximasse de sua índole ele afastava com asco, não queira imitar. Imitava como ninguém, podia fazer cópias tão perfeitas que ninguém saberia distinguir o original do falso. Não criava nada.
Tinha um sonho de viajar para longe, viver no campo isolado de todos, cercado apenas de animais e plantas sem precisar voltar. Ou ser vigia de um faról em um lugar ermo, onde pudesse se concentrar em si e no que tivesse para contar. Ou pescador, vivendo simples, só peixes e com o mar. Se pegasse um barco não ia mais voltar.
Um dia ele foi fumar na janela com o corpo metade pra fora, para não esfumaçar a casa. Caiu, e não voltou mais.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Viver é miragem.

Do alto da escada do horizonte mirei. Tremulando o sorriso atraente trouxe os homens nas suas caixas de metal, balançando. Balançando minhas vestes os envolvi no meu encanto. Mudo de lugar na minha dança surreal. Assovio doce. Mastigo devagarinho as bordas do caminho dos meus homenzinhos. Quando estão chegando desapareço e lhes entrego a barra do meu vestido espumante, esvoaçante. Acaricio o rosto dos meus noivos e os coloco pra dormir em meu colo. É doce morrer no mar.

domingo, 8 de novembro de 2009

Saga

Meu corpo tombou pesadamente sobre o chão da floresta. Fui arrastado até as margens do grande rio caudaloso e atirado na água. Meu corpo flutuou como uma jangada e foi arrastado correnteza abaixo. Fui me chocando com outros corpos, todos boiando rio abaixo até chegar em um ponto em que fomos recolhidos.
Descansamos à beira do rio, secando ao sol. Amarraram-nos aos montes, em pilhas gigantescas. Vieram muitos caminhões para nos carregar. Eu fui em um destes caminhões com muitos outros corpos empilhados, e estavamos ainda um pouco ensopados. Solavancos na estrada, pude sentir tudo até a parada do caminhão. Havíamos chegado. Apenas um caminhão chegou, os outros não sei para onde foram.
Era uma fazenda, nós descemos do caminhão para trabalhar cortando cana. Tínhamos apenas o de comer e onde dormir e todo nosso trabalho não era suficiente nem para pagar isso. Éramos reféns. Um dia um de nós tentou fugir e foi baleado. Tombou no chão de barro. A plantação estava cercada de homens armados e de chapéu. Mal podíamos vê-los. Raramente eram flagrados.
Mesmo que alguém conseguisse escapar estaria perdido. Fomos levados de caminhão e não sabíamos onde estavávamos nem o caminho de volta. Quem conseguisse passar da barreira invisível de balas ficaria perdido no cerrado até ser encontrado pelos homens de chapéu, e todos tinham medo do que fariam então.
Um dia um teve uma idéia. Diante do desespero descobriu que a rota de fuga era a terra. Ficou de cabeça para baixo, com as mãos plantadas no chão, equilibrando o corpo na vertical. Assim, no meio do canavial, plantou bananeira. Olhamos todos, descrentes da solução. Um barulho e desviamos o olhar por um segundo. Quando olhamos de volta, não havia ninguém lá, só pés de cana. Trabalhamos o dia inteiro, cortamos toda a cana daquela área e ele não voltou a aparecer. Não sei para onde ele foi.
À noite veio a gritaria e as ameaças. Onde ele estaria? Desespero dos capatazes, ódio do encarregado, descrença e violência. Pagamos pelo sumiço do nosso amigo. Menos um, outro não resistiu ao espancamento e virou semente.
Só havia uma saída, a terra. Um a um fomos sumindo. Plantando bananeira e sumindo no meio do canavial. O trabalho se multiplicava por que a quantidade de trabalhadores diminuía. Os capatazes desistiram, aceitaram a situação. Era um mistério, ninguém sabia para onde eles tinham ido. Tive medo e não quis acompanhar, fiquei pro trabalho.
Um dia fomos liberados. Poucos sobraram. Vim parar com meu dinheiro mirrado na maior cidade do mundo. Lá onde existem todos os rostos do planeta. Entrei em uma lanchonete e pedi um pastel com caldo de cana. A cana entrou na máquina de espremer, mas o caldo que saiu do outro lado era vermelho e viscoso.
Na extremidade oposta do balcão um jovem com olhos para o diferente percebeu e foi tomar nota do ocorrido. Do seu lápis não saía grafite negro mas vermelho sangue. Nos entreolhamos – eu baiano e ele paulistano – e entedemos. Encontramos nossos irmãos perdidos na viagem.

sábado, 7 de novembro de 2009

O mesmo.

O mesmo. Sempre, sempre um poste. Desejando ser mais forte. Pende na longitude. Não é sabido que segreda-se em vergalhão. Parado, mijado, recosto, esconderijo. O carro é seu perigo. Nos cabelos o fio - terra no cú. Não serra, não serra, não é árvore. Se encerra entre o calçamento e o pombo. Perde na sua desatenção. Não lembra quantos anos tem. Ninguém comemora seu aniversário. De vez em quando se apóia em uma velha. Roça nas costas das namoradas, e as vezes sustenta os namorados, revezando-se. Fala com os loucos e escuta os mendigos. Usa uma pochete de plástico cheia de porcarias - e os mendigos as investigam. Ruboriza nos engarrafamentes, é muito reservado. Morreu enforcado em uma corda. Mas continua de pé, sustentado pela corda. Milhares deles, todos enforcados em fileira. Todos na mesma corda. Estão secando da lavagem. Se amarram nos cavalos, sempre, sempre. A esmo.