segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O velhinho resmungava, zangava, de um jeito senil e fraco. Não impunha respeito às crianças em volta que lhe exigiam atenção e participação nas brincadeiras. - "Vamos brincar assim! Vamos brincar assado! Agora faz de conta que você é montanha! Agora faz de conta que é mar ou árvore!" - e ele resmungando: "Sai fora muleque! Assim não! Deixa o velho descansar...". Zanga e lamento, zanga e lamento. Ele reclamava mas nunca saía, nunca se punha fora do alcance das crianças. Ali sempre estava, sempre a reclamar, sempre a brincar e a ceder a vontade da criançada. Sempre contrariado.
Quando ele distraído pela idade, que faz das pessoas aéreas, olhava para o nada lembrando da vida esquecida, daquela vida que pulsava em vozes finas e que ele de longe identificava e tentava apertando os olhinhos em direção ao nada recordar - quando ele buscava no horizonte isso tudo, as crianças o encaravam em silêncio por um momento e sussurravam telepaticamente entre si: "Ele é um de nós." Ele não enxergava mas elas o viam assim. Ele não recordava mas elas sabiam assim mesmo. Quando ele volta de sua viagem a lugar nenhum - em sua busca que nada encontra mas que altera seu exterior fazendo as crianças o reconhecerem - elas sabem o que fazer. Não podem se denunciar em sua cumplicidade, ele não entenderia. Voltam a importuná-lo, voltam a sugerir brincadeiras incompreensíveis para a cabeça do velho e a pular incoveniente e descabidamente sobre ele de uma forma que seu corpo, já calejado pela idade, tampouco compreendia.
As crianças gostavam uma das outras, mas todo os seus afetos convergiam a um só ponto - o velho.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Por qué se suicidam las hojas cuando se sienten amarillas? - Pablo Neruda

Nesta tarde as folhas não caíram. Mantiveram-se poucas, mirradas, nas árvores semi-peladas pelo outono. Quanto menos folhas equilibradas nos galhos, mais se sentiam solitárias e desamparadas, sentiam vontade de pular para encontrar suas irmãs no chão. Mas não nessa tarde, aguentaram-se bravamente ao vento frio. Sua vontade de beber mais da seiva era tão grande que se tornavam um fardo mesmo para sua mãe que a essa época do ano já não tem mais tanto leite para compartilhar.

Ela, sem saber porquê, perdia seus cabelos.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


Ele recebeu cartas de amor pela primeira vez na vida. Em sua sala pobre lia uma a uma com cuidado e satisfação. Amava de volta a cada palavra de afeto, a cada expressão de carinho. Sobre mesa de madeira com uma gaveta em baixo, bebia seu vermute, fumava seus cigarros, lia e relia suas cartas de amor. Até que bateram violentamente na porta, uma, duas, três, quatro vezes. Ele correu sobresaltado, acordado  à força de um sonho bom. Foi até a porta e verificou pelo olho mágico que eram eles. Eram cinco dessa vez, todos de terno cinza, gravata e chapéu. Enormes, fortes e gordos. Correu de volta até a mesa, pegou suas cartas e as queimou rápido com o isqueiro. Bateram denovo, e denovo, cada vez com mais violência. Na quarta vez estava pronto, foi correndo atender a porta mas um chute a escancarou violentamente espatifando seu nariz e arrancando-lhe um dente da frente.


Os homens entraram e começaram a espancá-lo. Socos, pontapés, atiravam-no contra a parede e miravam nas quinas para causar maior dano. E lhe gritavam: “Quem? Quem, filho da puta?” – ele resistia, nunca entregaria seu amor. Mais tortura e violência. Pegam na cozinha seus garfos e cravam na sua pele. O sangue jorra e ele grita alucinadamente. Pegam as facas e começam a retalhar seu rosto, sempre gritando: “Quem te ama? Quem te ama?”. Quando trazem da copa o ferro de passar e ele vê que o estão ligando na tomada não resiste mais e grita chorando: “Ninguém! Ninguém!”. Os homens de terno cinza se entreolham sem expressão, largam-no no chão e saem pela porta.


A ambulância vem e consertam-no para que ele possa trabalhar no dia seguinte.


No dia seguinte sai para o trabalho e cumprimenta os vizinhos tentando esconder a vergonha que sentia por seu rosto deformado e costurado. Na volta, passando pelo parque, escutou o canto de um passarinho. Com sua boca murcha, remendada e sem dentes tenta imitá-lo e estupefato, consegue. Tinha até mesmo a impressão de que sua boca quebrada, agora emitia melhor sons de passarinho do que palavras humanas. Conversava com o canarinho e o entendia, e a ave, enamorada veio pousar em seu ombro. Ele cumprimentou com um sorriso que parecia um bueiro sem dentes e levou sua nova paixão pra casa.


Quando voltava do trabalho passavam horas a conversar e sorrir um pro outro: ele, sem dentes – o pássaro, com um pio. Dava de comer na mão, o alpiste. Deitado de costas no chão, observava com cuidado seu vôo gracioso dentro do apartamento vazio com pouca mobília. Denovo, enquanto se encontrava em estado de graça, os homens de terno cinza espancavam a porta. Ele levantou-se num pulo. Abriu a janela e o passarinho se foi. Ele correu para abrir a porta e os homens, mais uma vez, entraram batendo. Com um empurrão o fizeram cair estatelado sobre a mesa que cedeu e quebrou. Usaram o pé da mesa como arma, ora a parte rombuda virava bastão a lhe acertar o rosto, ora a parte lascada virava lança a perfurar seu corpo. Enquanto gritava de dor ele só pensava em seu passarinho, tão amarelo, tão alegre e tão pequeno. Os homens de terno gritavam com ele: “Quem te ama, seu filho da puta? Quem te ama agora?” – e após toda a tortura ele murmurou com uma voz quase inumana: “Ninguém...”.


Agora ele apenas acenava com a cabeça, não conseguia mais falar. Ia e voltava do trabalho em silêncio. Seu corpo alquebrado fazia com que ele mancasse e se contorcesse enquanto andava. Sentava torto na posição que lhe fosse mais confortável.  Na volta do trabalho passando pela estrada encontrou uma flor. Ela lhe sorria graciosamente. Cintilava em suas cores, e dizia em uma voz doce só ouvida pelos mudos: “toma-me, toma-me”. Ele a pegou, vigiando por sobre os ombros, assustado, colocou-a com um tanto de terra em um saco plástico e carregou até sua casa. Lá chegando a retirou do saco e colocou-a em um vidro de conserva que tinha guardado. Colocou-a sobre a mesa e ficou a olhar. Durante horas nada passou, até que vieram os homens de terno cinza, gravata e chapéu. Ele não sabia como se livrar da planta. Resolveu correr e atirá-la na lata de lixo. Os homens invadiram a casa e o espancaram tanto, tanto, que logo ele estava quase fora de si. E como das outras vezes lhe gritavam: “Quem te ama? Quem te ama, seu merda?”. Com suas últimas forças ele emitiu um gemido, que foi interpretado pelos homens de terno cinza como um “Ninguém” e era isso mesmo que queria dizer.


Veio a ambulância e o levou, mas desta vez não tinha conserto. Ficou deitado numa cama de enfermaria esperando a hora de sua morte. Tinha apenas um olho, entre-aberto, a pequena bilha negra brilhava à luz fria do ambiente. Uma enfermeira se aproximou e olhou. Se reclinou sobre seu corpo e sussurrou no seu ouvido: "ninguém". Ele fechou seu olho e morreu.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Ela o encontrou sentado em um banco de praça. Ele não a viu, continuou olhando para frente sem dar conta de sua presença. Ela sentou-se ao seu lado. Ele não virou o rosto, continuou olhando em frente, mirando o horizonte.
Ela lhe perguntou: "o que você vê?" - e um segundo após terminar a pergunta percebeu que ele era cego. Ele a respondeu assim:
"Vejo o céu pipocado de nuvens na alvorada, todo rosado. Vejo no campo verde as ninfas correndo a buscar abrigo nos bosques, na sombra das árvores. Também correm os centauros ribombando o chão com seu galope, como se a terra fosse tambor.
Na rua de pedras o trabalhador desce, já com a pele lustrosa do calor da manhã. Leva na mão seu almoço embrulhado e em seu cinto as ferramentas da obra.
Um fauno com seu sorriso malicioso o convida para uma partida de cartas antes que o sol venha também expulsá-lo para os bosques. Queria enganar o homem mas este não o escutou, pois já era cristão e agora ele só era enganado por seu patrão, seu pastor, seu magistrado - não jogava mais com os faunos, não dançava mais com as ninfas, não bebia com os leprechauns. Assim como eu não posso mais enxergá-la, mas consigo ouvir-te e sei que está sentada ao meu lado soprando lembranças no meu coração."

sábado, 12 de dezembro de 2009

Tive um sonho de revolta e violência. Acordei agitado e rouco com a gritaria. Tive a certeza de que ela não voltaria e isso me trouxe paz. Resolvi fumar um cigarro por que lembrei que ele espalha a dor do peito para todo o corpo, trazendo desânimo e náusea mas fazendo com que me sentisse mais digno e não apenas ridículo e envergonhado. Apago a luz para que me veja.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009



Primeiro foi a curiosidade ingênua e o zelo reverente. Depois veio uma beleza insuportável que me torturou e entorpeceu. Daí nasceu o verbo - da vontade de expressar o que a beleza havia produzido em mim. Em seguida veio a vontade de falar sem haver palavras para isso. Assim se produziu o silêncio. O silêncio não tinha lugar, como o choro compulsivo da criança que é vontade de existir. Existiu em meus pensamentos, diálogos intermináveis pontuados por afeto. Enfim calou-se em meus pensamentos. Hoje lhe escrevo cartas sem remetente e sem destinatário, em que conto coisas sobre a textura do céu e as bochechas da lua.
O resto é desencontro.

Enquanto ele fazia cafuné na grama sentiu o hálito fresco de crocodilo se desprender do solo quente. Se esforçou para não lembrar de nada, mas era inevitável. A sombra já cobria o seu rosto resfriando a gota de suor e os filetes de sol já eram ruivos.
Sentiu seu estômago embrulhar e a náusea se apoderar do seu corpo. Vinha subindo do estômago pelas cavidades, escalando pacientemente as paredes internas, milímetro por milímetro, se esgueirando pelos tubos.
Deixou o corpo cair gentilmente para trás, não havia mais o que fazer. Agora, ela que o acariciava, acelerando o processo.. Da sua bocarra aberta surgiram os primeiros ramos do que seria uma frondosa árvore. As raízes se expandiram violentamente estraçalhando seu corpo.
Confortável, postado, seus dedos se enterravam nos cabelos verdes.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Os sonhos não têm hora para vir, mas também não têm hora para ir embora. Queria dizer isso, mas não sabia como. Não havia palavra, e como dizem, a coisa vale por aquilo que ali não deveu caber.
Senil, sentado na soleira da porta, se lembrou de como era, e os olhos não mais enxergavam - a nuvem branca se apossara de todo o horizonte. Apenas uma claridade fosca o alcançava. Sentiu uma mão no seu ombro e levantou a sua própria ao encontro, mas era vazio. O calor repousado em seu ombro o fez lembrar de como deveria ser. Lembrava agora dos seus sonhos, que nunca vieram e nunca se foram. Arrependeu-se por ter apenas sonhado. Era ingrato.
O corpo mole pendeu e caiu, e não sentiu o peso de seus ossos no chão. Sempre quis se soltar e ser sustentado no ar, mas nunca houve ninguém para segurá-lo. Se elevou e sentiu o ar fresco das altitudes superiores. Estava nos braços do anjo que ele esperou a vida toda.
Finalmente leve se foi e não sabia se acordaria dali a pouco com a dor do peso dos ossos. Sua desconfiança fez pesar o peito. Pesava e doía forçando a palavra nos seus lábios: "saudade".
Havia palavra que em língua arcaica significava ausência do presente. Era a palavra dos exilados, dos velhos, e com eles calou quando se tornaram ausentes. Esse verbete arcano ecoava do início dos tempos, pulsando silêncio. Sem tempo surgiu, sem tempo se foi.
Não estava mais só, estava acompanhado da morte, seu último portador. Morria a saudade.
Ele não sabia como sair, suas mãos apalpavam o vazio e era sólido como rocha. Em sua expressão desespero, e as pessoas em volta riam, morriam de rir. Alucinadamente apalpava o teto e as paredes, e angustiado sentia o espaço diminuir. Morreria esmagado. O espaço apertava e ele já sentia a asfixia. Os risos aumentavam, abafavam seu grito.
Ele gritava e ninguém ouvia, pudera, não saía som de sua boca. Não tinha voz, apenas gestos. E com seus gestos cada vez mais acelerados tentava inutilmente conter à força o avanço das paredes e do teto em sua direção. Estava cada vez mais apertado. E as gargalhadas se tornaram estrondosas, histéricas.
Enfim, sem poder se mexer, se comprimia em um espaço mínimo. Seu corpo tomou a forma de uma caixa perfeita, retangular. Mais um pouco o espaço se fechou e “crec”, estalou seu pescoço. Gargalhadas sem fim, as crianças apontavam e se divertiam sem soltar seus balões de hélio.
Estirado no chão, sem ninguém saber, diante de aplausos efusivos, jazia o mímico, morto.