terça-feira, 27 de setembro de 2011

A última prova de Renato.



Pra começar ninguém conhecia seguramente sua origem. Renato foi encontrado na rua, com 4 anos de idade, sem saber o nome dos pais, e sem saber explicar como e onde tinha vivido até então. Sabia apenas seu próprio nome, falava pouco e em geral era tímido, mas com algum tempo no orfanato foi ganhando confiança em si mesmo e cada vez se abrindo mais. Continuava, no entanto, sem se lembrar do que se passara até ser encontrado e levado para o orfanato.
Renato não tinha um relacionamento muito bom com as outras crianças, porque estas, em sua maioria, eram levadas ao orfanato por obrigação e sempre que podiam fugiam de volta para as ruas. Por seu temperamento manso, ingenuidade e bondade Renato sofria um pouco nas mãos das outras crianças, mas em pouco tempo estas fugiam e eram substituídas por outros menores abandonados. Renato, diferente dos outros, gostava do orfanato e encontrou nos funcionários que lá trabalhavam uma família.
Em especial com um faxineiro chamado Vicente, senhor já com seus 60 anos, Renato desenvolveu uma forte amizade; os dois tinham uma relação quase de pai e filho. Foi Vicente que levou Renato pela primeira vez para o centro de treinamento para crianças carentes, e também cuidou de sua educação.  No centro esportivo Renato começou a treinar na pista de atletismo, os 100 e 200 metros rasos.  Com pouco tempo de treinamento Renato demonstrou uma velocidade surpreendente, tornando-se não apenas o melhor velocista do centro de treinamento como também vindo a ser vitorioso em todos os campeonatos locais e regionais que competiu.
Certo dia, quando ainda treinava no precário centro para crianças carentes algo inesperado se sucedeu. Como a chuva tinha deixado a pista de corrida inutilizável por causa da lama e das poças, Vicente, que era o treinador do centro esportivo, colocou as crianças velocistas para arremessarem pesos com os outros atletas mirins. Apesar dessa categoria de atletismo não agradar a Renato como as provas de corrida ele se saiu surpreendentemente bem e com um dia de treinamento já quase igualava os jovens que só treinavam nessa categoria.
A partir desse dia, o velho Vicente entendeu que estava diante de algo diferente. Resolveu a partir de então testar Renato em todas as categorias do atletismo que fosse possível. Renato não frustrou as suas expectativas, se tornando o fundista com os melhores tempos, seja em 800 metros ou na corrida de 1500 metros. Renato se aplicou no salto com vara, salto em distância, salto triplo e em todas as categorias que disputava, fazia os melhores tempos e as melhores marcas.
Quando completou 17 anos Renato foi para a primeira olimpíada representando seu país e trouxe de volta mais de 20 medalhas de ouro, quebrou alguns recordes estabelecendo novas marcas e se tornou sensação em todo mundo. Renato era um fenômeno inexplicável, só não ganhava provas coletivas porque seus companheiros o atrapalhavam.
Mas foi nesse momento, no auge da sua carreira, que em uma entrevista Renato conseguiu estabelecer uma explicação para seu sucesso nos esportes, e sua resposta foi o início de um processo de rápida decadência. Perguntado sobre como ele explicava sua surpreendente performance em categorias esportivas tão diversas, assim ele respondeu: “Eu não sou um atleta, apenas um homem pode ser um atleta, eu sou outra coisa, eu sou um herói  à moda dos gregos, o resto da humanidade não são meus congêneres, eu sou irmão de Hércules e de Aquiles. De alguma forma, eu não sei bem como, mesmo não sendo um deus, eu trago algo de divino em mim, e isso é terrivelmente solitário e assustador.”
Essa declaração de Renato continha uma verdade incômoda e inevitável, e fez com que o mundo despertasse para essa dimensão perigosa e ameaçadora de sua existência. Não era sua intenção menosprezar a humanidade, antes disso Renato lamentava não poder fazer parte dela, mas de alguma forma a expressão manifesta pelas suas palavras de sua natureza sobre-humana causou uma impressão profunda e definitiva no resto das pessoas comuns. A resposta imediata da população em geral diante dessa declaração foi a aversão completa e absoluta em relação a Renato. Impuseram-lhe testes biológicos e psicológicos, mas todos atestavam pela humanidade de Renato. Não era um alienígena e não era um mutante, apesar de seus feitos sua estrutura física não diferia em nada da de qualquer outro ser humano. Mas de qualquer forma, com a auto-consciência manifesta de sua superioridade ele nunca mais seria considerado humano pelas outras pessoas.
Antes das olimpíadas seguintes diversos países entraram com uma representação contra a participação de Renato nos jogos. Mesmo a população do seu país estava contra a sua participação, e o governo na figura do comitê olímpico nacional o aconselhou a não se inscrever nas provas preliminares para as olimpíadas seguintes. Renato não queria abrir mão daquele veículo que o havia incluído no mundo, mesmo que agora ele o afastasse das demais pessoas. Conseguiu por fim, negociar sua participação, afinal, não existia nenhum argumento médico ou científico que o impedisse.
Renato conseguiu se classificar em primeiro lugar em todas as categorias que se inscreveu e nos jogos ficou claro que a oposição de toda a humanidade à sua participação seria implacável. Ganhando todas as medalhas de ouro das competições que participava de baixo de vaias e xingamentos, Renato seguiu competindo, até chegar a prova de salto triplo.
Nessa prova, chegada à final, Renato correu para vencer seus oponentes, deu o primeiro passo ouvindo os xingamentos e a gritaria que tentava desconcertá-lo, quando deu o segundo passo pôde ouvir com distinção cada voz do estádio que o vaiava e cada insulto lançado contra ele, sentiu o ódio coletivo cair sobre seus ombros, e finalmente depois do terceiro veio o salto. Esse salto durou uma eternidade para Renato, em câmera lenta ele decidia se iria empatar com a melhor marca de seus oponentes e assim tentar propor uma trégua com a humanidade, ou se iria se humilhar e deixar outro ganhar caindo antes.
Mas resolveu que não, sabia que isso não seria suficiente, que a fraude seria óbvia e ofensiva e o orgulho da humanidade diante desse gesto compassivo ficaria ferido gerando uma revolta ainda maior contra a sua pessoa. Ainda, tinha sido graças à sua retidão e competência no atletismo que ele havia ganhado a simpatia de todos, que ele tinha conquistado um lugar no mundo, e agora, por causa dela se via deslocado de novo, sem lugar. Renato seria coerente consigo mesmo, e deixaria a humanidade mudar de opinião e ser arbitrária ao seu próprio gosto. Renato não sentiu vontade de cair antes das marcas do seus oponentes, nem em cima das marcas de seus oponentes, nem depois dessas marcas... Renato não queria mais estar ali, então ele não pousou, seu salto se transformou em um vôo inesperado; observado por milhares de expectadores atônitos, e milhões que assistiam ao evento pela televisão.
Renato voou para longe dali e nunca mais ninguém viu ou ouvir falar dele.


http://www.youtube.com/watch?v=lCEbGaaZpDA

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O céu dos passarinhos



Desde pequeno sempre fui muito mais próximo de minha avó materna do que da paterna. Lembro ainda que quando vivíamos em uma cidade vizinha a que meu pai trabalhava, todos os dias eu, minha mãe, e meu irmão pegávamos carona com ele até a cidade principal para ele trabalhar e pra minha mãe ficar na casa da minha avó conosco.
Depois de alguns anos nos mudamos pra cidade principal e viemos a morar no mesmo bairro que a minha avó, a apenas quinze minutos de caminhada da casa dela. Passei boa parte de minha infância e juventude lá por conta disso, em tardes agradáveis com cochilos e comidas.
Certo dia, não sei se por idéia da minha mãe ou dos meus tios, cismaram de colocar um passarinho na casa da minha avó. Ela era contra. Desde que perdera o cachorro da família, o “Maneco”, muitos anos antes, ela só se interessava por plantas e não tinha nenhuma vontade de ter outro animal de estimação.  Colocou objeções: “Vai dar trabalho, vai fazer sujeira, não tem onde botar...” – como se uma gaiola fosse um trambolho enorme. 
Acabou por pendurar no banheiro.
O que se seguiu foi algo inacreditável. É previsível que ela tenha se apegado ao passarinho, mas além disso, a presença do canarinho resultou numa inversão na minha relação com minha avó. Ela chegava a todo momento na sala contando animada o que o passarinho fazia, como se fosse uma criança e fazia muitos elogios a ele: “Como canta bonito... e é tão pequenininho, tão delicado...”. E eu me comportava com ela como se fosse um adulto, pois já estava acostumado a ter passarinho em casa, desde bem pequeno, por escolha do meu pai e nenhuma daquelas observações me era novidade. Me senti um pouco orgulhoso, cheio de mim, por ter naturalidade em relação ao passarinho, enquanto que ela não.
Lembro que foi tudo muito rápido, talvez no mesmo dia em que minha avó ganhou o passarinho ou talvez no dia seguinte, enquanto estava na sala de sua casa, ouvi um estrondo e o grito dela; “Ai, meu Deus! Ai! Ai, me ajuda L.!”. Ela chegou na sala em estado histérico cobrindo o rosto com as mãos.  Assustado eu corri até o banheiro para ver que a gaiola tinha despencado e que o passarinho se debatia no lado da grade, que agora estava de encontro com o chão, e que sangrava.
Eu ajeitei a gaiola ainda a tempo de vê-lo no fundo de jornal ofegante, assustado e ferido por poucos instantes antes de morrer. Quando cheguei à sala, minha avó me esperava aflita me olhando, seu olhar buscava uma resposta. Nessa hora senti todo o peso de ser adulto. Não sabia bem como dar a notícia a ela, e acabei falando de qualquer jeito; “Ele não conseguiu não, vó...”. 
Ela desatou a chorar e a falar acelerado, se sentindo culpada pelo acidente, se desculpando e se lamentando e sofrendo. E eu, ainda sem saber ser adulto, tentando sê-lo falei assim pra minha avó: “Calma vó, ele tá bem agora, ele tá num lugar bom, com bastante alpiste e muitos passarinhos pra ele brincar, calma, agora já passou, calma...” 
Assim que eu terminei de falar essas palavras eu percebi que eu não tinha bem certeza se isso era verdade, se existia mesmo um céu de passarinhos, mas enquanto eu refletia sobre isso, em instantes fugazes, eu passei a acreditar. “É... bem que poderia existir um céu dos passarinhos.”
Hoje, olhando pra trás, vejo como se formam as crenças; da necessidade ao discurso, do discurso à dúvida, da falta de sentido ao auto-convencimento. E foi assim, que passei de um discurso de consolo urdido pela necessidade para a duvida se esse discurso era ou não verdadeiro, e por fim à certeza de que a história que eu mesmo tinha inventado, a alguns minutos atrás era, com certeza, verdade.
Tive que cuidar de tudo o mais que envolvia a morte do passarinho, porque minha avó não tinha estrutura para isso. Joguei o passarinho fora, arrumei a gaiola, limpei o chão e mesmo sem saber fazer nada disso direito, digo, sem saber ser adulto, até que eu não me saí mal.
Depois disso me sentei na sala com minha avó que fitava o vazio, ainda em estado de semi-choque.  De vez em quando suspirava, ainda choramingava um pouco, baixinho. E foi ela que começou a falar comigo, ainda vacilante, como se ensaiasse, como se estivesse aprendendo a falar: “Ele... ele está melhor né? Acho... que agora está tudo bem com ele...” Eu respondi que sim com a cabeça, mais uma vez sabendo que era necessário confirmar, era o melhor.
Aos poucos fui distraindo ela, e dali a alguns minutos ela já até riu um pouco de umas palhaçadas que eu fiz. E assim passou o final de mais uma tarde na casa dela.E depois disso, é claro, não houve alma nesse mundo que convencesse minha avó a ter outro passarinho, ou qualquer outro animal.