quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Rosileide

Rosileide era uma mulher completamente sozinha na vida a não ser por sua filha. Tudo que uma tinha no mundo era a outra. Viviam em um casebre muito pobre de paredes de tijolo sem reboco, cercadas por um terreno de mato alto e entulho. A miséria era tanta que abatia o espírito, extenuava a alma e anestesiava o coração. A situação, por mais terrível que fosse, era pra ser suportada. Afinal, que escolha se tem se suas funções fisiológicas ainda estão operantes? Não há nada a fazer, apenas continuar vivendo.

Todo quadro deplorável tem seu lugar na galeria da resignação, e assim, Rosileide conseguiria permanecer nessa pobreza a sua vida toda se não fosse por sua filha. Nem toda miséria do mundo é suficiente para um coração solitário. Sozinha uma pessoa pode aguentar a situação mais degradante por anos a fio. A única coisa necessária é não ser obrigada a encarar outro ser humano. O anonimato é necessário.

Mas nem isso Rosileide tinha. Sua filha, como toda criança, ainda mais sozinha no mundo que era, se agarrava a mãe com todas as suas forças e afeto. E a mãe só tinha cabeça, coração e músculos para a sua filha. Sufocante, nauseante, essa relação.

Rosileide sempre fôra sozinha no mundo. Todas as pessoas que passaram por sua vida foram breves. Inconstância nos relacionamentos e solidão, para isso Rosileide estava preparada. Mas pra uma filha não. Não bastasse todo o peso do mundo, não bastasse viver cercada por uma paisagem de zona de guerra, toda a pobreza, miséria, calor, feiura e fedor que essa terra podia produzir, ainda teria que suportar outro ser humano constantemente presente, cuidar de sua subsistência e relacionar-se afetivamente com ele? Era muito mais do que podia suportar. Toda hora um pensamento assaltava a cabeça de Rosileide. O pensamento de que se a culpa da miséria não era de sua filha, com certeza a situação seria melhor se tivesse uma boca a menos para alimentar.

A miséria também tem esse efeito, ela redimensiona todas as coisas. Coisas insignificantes tornam-se estupendas, e coisas fundamentais tornam-se detalhes minúsculos, imperceptíveis. Dessa forma tudo no dia-a-dia se torna um fardo insuportável, e toda a chance de salvação desta realidade putrefada escorre pelos dedos ou passa por debaixo do nariz sem ser percebida. A filha era para Rosileide hediondamente gigantesca, estava em todos os lugares e em todas as horas do dia.

Como era completamente sozinha no mundo a levava para toda a parte. Desde a compra do material para os consertos de roupa que colocavam o dinheiro dentro da casa, até a entrega das roupas lavadas por encomenda debaixo do sol a pino. Moravam em um subúrbio poeirento e calorento distante do centro da cidade. Foi andando de trem uma vez que Rosileide percebeu um pequeno espaço para si mesmo durante o dia. Quando o trem estava lotado ela e sua filha tinham de sentar-se separadas, em outras vezes sua filha ia sentada enquanto Rosileide ia se equilibrando de pé e observando-a a distância. Era nesses pequenos instantes que Rosileide olhava a paisagem pela janela do trem, reparava nas pessoas, suas roupas, expressões, tentava adivinhar seus pensamentos, seus desejos, suas frustrações. Apenas nessa hora Rosileide era ela mesma, se sentia autêntica e não apenas uma sombra da filha. Sentia-se bem, anônima numa multidão de pessoas cuja interioridade era indevassável.

Mãe e filha, certa vez, sentaram-se separadas por causa da lotação do trem. Até que depois de algumas estações vagou um lugar próximo da menina e esta fez questão de chamar a mãe para sentar perto dela, mas Rosileide recusou-se. Nesse momento a filha entendeu um pouco do que representava o trem tanto para ela quanto para sua mãe. Os outros passageiros ao ver essa cena expressaram com suas feições o desagrado com o evidente desleixo da mãe. Não sabiam eles é que a filha não era uma preocupação pequena demais, e sim grande demais para ser suportada. Algumas vezes Rosileide até se fazia de distraída pra ver se alguém lhe prestava o favor de raptar a filha e livrá-la deste estorvo. Já havia pensado também em largar a filha na rua em uma de suas incursões ao centro da cidade, mas logo desistiu da idéia por considerar um abandono muito obsceno – um golpe grosseiro demais se comparado com a leve negligência no trem que poderia um dia terminar em rapto, se ela desse sorte.

Afinal, deu-se o caso, e no trem seria. Rosileide, sentada distante de sua filha resolveu saltar em uma estação não dando tempo para a filha a acompanhar. A porta do trem fechou-se logo atrás das costas de Rosileide e ela começou a caminhar em paralelo à linha sem olhar para o vagão. Manter seus olhos fixos na linha amarela pintada no chão da estação exigia de Rosileide um esforço sobre-humano. Finalmente cedeu, e olhou pela janela do vagão. Rosileide viu passar no olhar de sua filha uma infinidade de estados de espírito – eles desfilavam apressados na velocidade da luz, como o dizer de muitas coisas quando não se tem tempo o suficiente. De toda a diversidade Rosileide conseguiu distinguir apenas alguns estados: pavor, tristeza, desolação, resignação, e por fim compreensão. Algo nos genes de sua filha, ou no inconsciente registrado como herança de milhares de gerações passadas faziam com que a menina compreendesse a vida. Rosileide despreocupou-se. Sua filha estava agora no mesmo lugar em que ela estivera há muitos anos atrás – e a menina saberia, assim como ela soube o que fazer. Com o tempo é até bem provável que se acostume com a solidão e veja como tudo é mais fácil assim, sem ter que encarar outro ser humano. Com o tempo verá como é terrível ter que encarar outro ser humano. “É, ela vai saber se virar...” – pensou antes de tomar um ônibus para nunca mais.