sábado, 23 de outubro de 2010

Jogando fora todos os sonhos mais uma vez sou só corpo, mais uma vez sem memória, mais uma vez sem sentido. Tenho sentido um propósito maior, maior que a própria vida. Mais uma vez a força, mais uma vez o medo de não estar a altura do destino que escolhi. Ou escolheram – não é possível precisar o quanto há de voluntário e o quanto há de contingente nessa condição. Agora nada mais é minha vontade, mas tudo é vontade de vida que não me pertence. Nunca pertenceu, nunca fui o timoneiro. Mas já admirei o horizonte, e a luz que emanava era insuportável. Desviei o olhar, não tenho mais olhos, agora sou apenas corpo.
Sinto o calor, sinto o frescor da brisa, sinto os meus sonhos que flutuam em torno de mim roçar de leve minha pele e arrepiar. Sinto uma aura que me circunda, e é tão volátil que desaparece com um espirro. Sinto que não há interior que baste pro que me espera, sinto que tenho que ser só sentido. Os sonhos devem estar a flor da pele, não cabem dentro de mim. Os sonhos não são meus; são sussurros do vento, são borbulhar de águas, são olhar de águia.
Serena revolta que me atinge, sombria vibração que balança meu corpo; é a respiração da terra. De novo sou um sopro grave – expiro. 

De novo sou novo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A incrível história do intrépido caçador de formigas e seu insólito fim

Tudo começou com uma brincadeira perversa quando ele era criança; usando lentes de aumento esturricava formigas desavisadas que cruzavam todos os dias o longo caminho entre o canteiro ocidental e seu formigueiro na borda sul. Entre seus amigos ele nem era considerado o mais cruel, já que as outras crianças se divertiam torturando gatos e outros animais maiores; no entanto, entre as formigas do formigueiro sul ele passou a ser conhecido como O Fogo do Céu, que ataca sem aviso ou clemência.

Já adolescente ele se deparou com o maior desafio de sua vida até então; enfrentou uma enorme tropa de saúvas vermelhas descalço em um terreno baldio e, apesar de todo picado, conseguiu exterminá-las todas. Sua fama se espalhava por vastas terras e diferentes espécies de formigas comentavam do terror - agora sem mais nomeá-lo -, cada uma de seu modo, cada uma em sua língua. Também entre as pessoas sua fama se alastrava: uma tia sua, por exemplo, ao saber de sua aptidão e gosto o convocou para acabar com a praga que se instalara em seu quintal - ou seria o seu quintal que se instalara sobre a praga? Não faz diferença, no final das contas...- oferecendo-lhe doces como forma de pagamento.

A essa altura o caçador de formigas já conhecia pesticidas mas não os utilizava por motivos éticos - seria o remédio a matar as formigas e não ele -, mas isso não significa que não utilizasse métodos genocidas. No quintal de sua tia, após rastrear os caminhos abertos pelas formigas no gramado, e através deles, descobrir o formigueiro em que se escondiam se decidiu por um ataque fulminante, e após regar o formigueiro com álcool ateou fogo no ninho da praga. (Era a primeira vez que utilizava essa método repetido em muitas outras oportunidades.) Para fizalizar seu serviço, cutucou o formigueiro com um galho para revelar em seu íntimo larvas indefesas e formigas operárias se revirando no fogo ardente.

Nesse e em muitos outros massacres promovidos pelo caçador de formigas utilizando fogo, a ira das formigas se ajuntou diante do horror de encontrar sua casa transformada em um inferno em brasa e cinza, e o que parecia improvável aconteceu; diferentes espécies de formigas formaram uma confederação buscando vingança e resistência contra o Inimigo.

Certo dia ao seguir um rastro deixado na mata de propósito pelas formigas, o caçador se encontrou em um pequeno vale, e viu surgir contra o sol, em seu entorno um exército formado por bilhões de formigas de todos os tamanhos, cores, e formatos. Lideradas pelas grandes formigas guerreiras conhecidas como Grilo Louco e Besouro Sentado a multidão de formigas avançou contra seu carrasco de outrora cobrindo cada milímetro de sua pele com dolorosas picadas. O caçador tombou, enorme, ao chão, causando estrondo e se debateu até não poder mais e finalmente silenciar. Sua pele foi tão picada que adquiriu uma textura rugosa e grossa, e também uma tonalidade escura, enquanto que as extremidades de seus membros fora devorada deixando de resto apenas pontas secas.

Até hoje pode ser visto por quem passa nesse sítio um tronco de árvore tombado no chão, cujos cotocos de galhos se assemelham a quatro membros humanos congelados enquanto se debatiam em agonia. Esse tronco é o que restou do caçador.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Prólogo


Eu era sonho e cem vezes acordei.
Na madrugada do dia 7 de agosto de 1989 o advogado criminalista Júlio Castilho adentrou os portões do complexo penitenciário que fica no distrito de Oirapuia – a trinta quilômetros da cidade de Mantosos –  para visitar seu cliente, o prisioneiro Joel Freire, acusado de homicídio.
O preso acordou de seu sonho em que era o advogado criminalista chamado Júlio Castilho para se surpreender sendo apenas um nome escrito na carta enviada por Maria Félix das Dores à sua irmã, Matilde Félix Fernandes, contando do amor que sentia por aquele homem que nunca tinha visto e só conhecera de ouvir falar.
Por mais que não se saiba nada sobre os eventos relatados acima, tomaram parte deles o carcereiro Antônio José das Flores e o carteiro Giusepe Farias, mas nenhum deles pode dar testemunho a favor da veracidade desses fatos uma vez que nem um nem outro tinham acesso às informações contidas nas cartas ou nos sonhos dos presidiários. Ele eram apenas os guardiões de um mistério que, apesar de não ter começo, tem seu fim planejado para o dia 13 de março de 2001

domingo, 6 de junho de 2010

Lá do alto só podia se ver o campo limpo. Mais de dez léguas caminhei para alcançar o lugar onde construí minha morada. Do lado de cá, atrás do morro Deus ergueu a floresta onde eu caço a madeira pra construir o curral das cabras.
Depois do inverno - quando já começava a esquentar - as cabras começaram a desaparecer; era a onça. Resolvi tomar uma atitude com temor da ira que despertaria o atentado contra ser tão majestoso.
Peguei meu rifle e saí com o sol ainda alto para me empuleirar numa posição boa. Passei dois dias e duas noite no alto da árvore esperando, e a onça não aparecia; astuta, pressentiu minha presença e se esquivou do perigo - pensei comigo.
Na terceira noite, com a lua alta, a onça apareceu com seu couro tigrado e antes que eu pudesse fazer mira ela me fitou dentro dos olhos lançando seu encanto felino sobre mim. Fiquei paralisado com o olhar que me atravessava, o rifle me escorreu pelas mãos e foi se perder nos arbustos abaixo da árvore. Ela se virou e seguiu seu caminho.
No dia seguinte, quando o sol nasceu, fui ver as cabras. Menos duas; sobraram só as carcaças. Não podendo defendê-las resolvi por me oferecer em sacrifício.
Na noite do mesmo dia caminhei floresta adentro desarmado para me render ao inimigo. A lua, ainda cheia, alumiava o caminho por entre as folhas das árvores. Senti que ela me farejava, mas bicho superior que é, não armou tocaia - me encarou sem artifício.
De novo lançou seu olhar assassino dentro de mim, me atravessando. Deu o bote e me derrubou no chão, mas não cravou suas garras em mim; ficou me encarando longamente e de perto senti seu hálito de carne fresca. Era doce. Enterrei meus dedos em seus cabelos e nos amamos ali, no chão da floresta, entre folhas secas e galhos.
Depois de saciada ela me devorou, e agora corremos juntos pelas pradarias e florestas caçando cabras e qualquer animal que a terra nos ofereça.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

O último pecado da humanidade

No mundo de 2133 d.C. todas as medidas paliativas tomadas no último século para contornar a questão ambiental foram consideradas com seu prazo de eficácia expirado. Se tornou nececessário uma solução final.
Nesta sociedade futurista a elite intelectual e política conseguiu com medidas saneadoras resolver boa parte dos problemas das grandes cidades. Com a reciclagem de todo material produzido o disperdício tangenciava o limite mínimo e assim, a Terra se recuperava a passos largos do grande dano causado pelas guerras e a equivocada reconstrução que se seguiu na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do XXI. Mas a recuperação não parecia suficiente.
A principal questão política pendente era a do consumo da carne, e isso incluía eliminar de vez a produção baseada em pequenas comunidades camponesas –  que por um lado não conseguiam satisfazer as necessidades do mercado por produtos de origem vegetal devido à modéstia do volume de sua produção, e por outro conservavam o bárbaro e vergonhoso ritual de sacrifício de seres vivos e consumo de carne.
Este novo mundo levou às últimas consequências determinados princípios da sociedade moderna que haviam sido deixados de lado ou abandonados por pura preguiça e falta de determinação das gerações anteriores, e principalmente, pelos freios morais que foram pouco a pouco sendo eliminados graças à ajuda e apoio da classe artística antenada aos novos valores da sociedade do futuro. Inesperadamente, foram as intervenções artísticas nas ruas que conseguiram com avançados métodos publicitários reformar os espíritos para a nova ordem.
O princípio de transparência na vida, por exemplo, havia sido realizado com a cobertura completa das ações de todos os indivíduos com câmeras, scanners e sensores, que captavam os mínimos gestos e transmitiam em tempo real para todo planeta, para quem quisesse assistir o que cada um fazia em cada momento. Isso já havia sido previsto por crônicas do século XX, porém, ninguém poderia prever que os próprios cidadãos observariam a normalidade de seus congêneros e corrigiriam os desvios agindo da maneira adequada para atenuar seus efeitos e detectar sua origem reeducando o indivíduo em questão.
Não havia nenhum instituto ou departamento encarregado da vigilância e normatização do comportamento dos indivíduos, a própria sociedade se encarregava disso colocando em ação amigos, familiares, colegas de trabalho, e até pessoas desconhecidas poderiam de maneira bem sutil sugerir a alteração adequada para trazer de volta o concidadão à norma. A participação na restauração de um concidadão é considerada uma honra e motivo de alegria.
Por outro lado a privacidade e a individualidade eram resguardadas e estimuladas ao extremo, ao ponto de nos transportes públicos serem implantadas cabines para separar os assentos, isolando-os herméticamente, de modo que os passageiros não se encostassem, não ouvissem a mesma música, não respirassem o mesmo ar, e era dada até a opção de alterar o painel que mostrava a paisagem. Cada usuário poderia carregar as configurações de sua preferência a partir de seu cartão de identidade eletrônico. Um dispositivo semelhante também havia sido intalado nos elevadores, com o incoveniente de aumentar o espaço ocupado por cada passageiro obrigando os engenheiros a aumentarem o tamanho interno dos elevadores para não diminuir a lotação.
Nas grandes cidades a paz e consenso reinavam e o apoio era total em relação às intenções do governo.  A aplicação dos ideais de pureza corporal e espiritual, a higienização dos espaços públicos e privados e  formulação de uma ética verdadeiramente humanista praticada com regozijo por todos os cidadãos tiveram como efeito o fim das desigualdades sociais e da exploração exarcebada que em outros tempos degradava a condição humana e impossibilitaca a vida digna de todos.
Mas existia ainda o problema das comunidades camponesas e seu modo de vida que se mantinha o mesmo desde tempos imemoriais. Desde antes das guerras e da reconstrução, desde muito antes do advento da imundice industrial, desde antes da invenção do Estado e da sociedade civilizada. Teimosamente estes indivíduos se mantinham imunes ao progresso, seguiam retrógrados e agarrados às suas tradições, com seu modo de vida sujo, ultrapassado e promíscuo se reproduzindo em progressão exponencial; irracionalmente colocando em risco a existência de toda a espécie humana e o equilíbrio ambiental da Terra, conquistado a tão duras penas. Pareciam, por uma inteligência diabólica e coletiva, querer superar a baixa expectativa de vida com a quantidade de filhos.
Estima-se que com todos os avanços da engenharia genética e da medicina cirúrgica a média de estimativa de vida de um habitante das cidades seja até quatro vezes maior que a de um habitante das aldeias. Mesmo assim, vivendo menos, eles mantinham persistentemente seu modo de vida, como se essa opção fosse anterior à sua tomada de consciência do mundo, anterior ao seu nascimento e fosse mais dura que aço; inquebrável. Optavam por uma existência suja e coletiva e não por individualmente viverem mais, era inexplicável porque não era uma opção e sim uma compulsão. Eles viviam compulsivamente, sem que a vida fosse um gesto da vontade, uma escolha.
Muitas soluções foram pensadas. A migração para as cidades era largamente estimulada e toda a estrutura necessária para se assentar à nova situação e se adaptar a nova vida era garantida pelo governo. Muitos optavam por vir às cidades, e só assim era possível entrar no futuro, por opção e mote próprio, uma vez que a adesão compulsória é um método bárbaro e típico da vida que levavam antes da grande reforma e não do novo mundo que se abre na alvorada do futuro. Era motivo de orgulho que não houvesse registro de nenhum caso de pessoa que se arrependesse e escolhesse voltar às aldeias depois de ter migrado para as cidades. Para isso contribuiam os sofisticados e sutis mecanismos de conformação à nova ordem, como a imperceptível reeducação promovida pelos próprios concidadãos.
Também era oferecido a qualquer morador das aldeias, cirurgias para esterelização de homens, mulheres e até crianças que se voluntariassem, porém, como tudo dependia da vontade e escolha dos aldeões toda solução tinha o limite de a maioria da população continuar compulsivamente a viver como seus pais e avós.
No final das contas considerou-se que de uma maneira ou de outra a existência dessas aldeias deveria cessar assim que possível. Apesar de não ser muito humanista parecia que a única saída que restava era exterminar essa população e como a avançada tecnologia das cidades permitia, isso seria feito de uma só vez e sem sofrimento. A conversão forçada dos habitantes das aldeias parecia aos moradores das cidades algo bárbaro e contraditório com seus princípios de modo que o extermínio restava como opção menos ofensiva.
Muitas décadas antes um morador das cidades já havia previsto essa solução e exposto sua opinião, de que ela era desumana. Por outras contestações esse habitante havia se tornado um incômodo e era considerado por uns um perverso e por outros um moralista retrógrado. Ele havia sido o último morador das cidades a migrar por livre e espontânea vontade para as aldeias e antes disso deixou escrito um grande tratado em que denunciava com conceitos antiquíssimos – de mais de duzentos anos de existência – que a sociedade presente era uma utopia burguesa e que ela tentava a todo custo ignorar a humanidade, reificando o mundo das mercadorias e substituindo o trabalho humano por máquinas para não se identificar com os produtos gerados. Essa versão deturpada da sociedade pelo olhar desse homem louco foi refutada com facilidade pelas mentes mais pródigas da sociedade ao demonstrarem que a arte e o pensamento ainda eram produtos gerados pelos humanos, e apenas por eles, e que apenas esses produtos realmente refletiam a natureza da alma humana e não o vil trabalho manual que existia nas antigas fábricas.
Finalmente uma bomba foi produzida de modo que quando fosse acionada transformaria as toxinas existentes em organismos consumidores de carne vermelha em um veneno que seria responsável pela morte das populações das aldeias. Os argumentos eram justos; no passado os ancestrais primitivos da sociedade já haviam matado por Deus e pela Democracia e nos tempos limpos esses eram considerados princípios guiados por interesses parciais ou impregnados de misticismo. Dessa vez não, a mortandade era pelo bem do futuro da humanidade e da vida na Terra. Quanto mais digno e justo o motivo do ataque maior a fúria dos agressores. Mais ainda, na população em geral, a mortandade era justificada pela imoralidade do consumo de carne e do sacrifício contínuo e perpétuo de seres vivos. Com um golpe só seriam carrascos dessa aberração.
A decisão foi posta em prática no dia __ de _____ de 2133 d.C. com o pequeno ajuste de se utilizar potentes bombas incendiárias em vez daquela projetada inicialmente. O ajuste se justifica pelo efeito estético que causaria e para melhor se adequar à mitologia das aldeias que defendia que o mundo acabaria em fogo. A mudança também  é compreensível uma vez que os moradores das cidades eram portadores de um elevadíssimo senso estético e queriam fazer do evento que seria transmitido em tempo real para todo mundo um espetáculo de luzes e cores. Pela potência das bombas a morte seria igualmente instantânea e a destruição colateral é justificável diante da beleza do acontecimento e do simbolismo do fogaréu ser o parteiro desse novo tempo que se iniciaria. A equipe artística encarregada de registrar e televisionar a destruição das aldeias resolveu por uma homenagem à obsoleta arte do cinema do século XX; usando como trilha musical para o espetáculo a música Surfin´ Bird gravada em 1964 por um grupo chamado The Trashmen e utilizada em filmes de guerra nessa época.
Depois desse último sacrifício um futuro brilhante aguardava os espíritos elevados das cidades e seu ideal de pureza, ordem e perfeição poderia reinar sem máculas. Esse foi o último pecado da humanidade.

( The Trashmen - Surfin Bird : http://www.youtube.com/watch?v=ZThquH5t0ow )

quinta-feira, 20 de maio de 2010


Eu queria dizer que ainda iria lhe aparar se você caísse. Queria que soubesse que não é por cuidado, mas por querer te tocar com a palma da minha mão. Mas não havia mais nada que pudesse ser dito. O silêncio era maior; infinito separando planetas que nunca vão se encontrar por girar em órbitas diferentes.

Se não houvesse todo o engano e desencontro que houve, se não tivesse fingido papéis que não me cabem – como a tolice de querer ser regente da orquestra do cosmos – mesmo assim passaríamos distante, mesmo assim estaríamos em freqüências distintas.

Mas as forças não têm compaixão ou simpatia pelos sentimentos humanos, ao menor sinal de fraqueza desterraram o sentido; e ele exilado ficou, para sempre, sem a possibilidade de comunicação.  Mesmo assim eu escrevi em um papel e enterrei o tratado de uma linha sobre o desencontro, para compor o imponente acervo poético das minhocas: “Eu ainda te amo.”

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Roletas

Hoje o ônibus estava diferente; havia roletas demais, uma atrás da outra, enfileiradas no corredor entre os assentos. E também as barras de ferro para as pessoas se segurarem estavam colocadas de maneira estranha; na parede lateral interna, atravessando as janelas na horizontal. Quando olhei para o teto, percebi que ali também havia algo diferente; bancos pregados de cabeça para baixo. Parecia que as máquinas que montam ônibus tinham enlouquecido.

Quando desci do ônibus eu vi que o mundo estava repleto de roletas de ônibus por todos os lados; nas calçadas, no meio das ruas, e colocadas de lado nas paredes e pilastras. Eram roletas sem sentido, qualquer pessoa poderia dar a volta nelas e também não separavam coisa alguma mas mesmo assim todos passavam por elas e depositavam o dinheiro em urnas acopladas.

Vi até um homem que estava ajoelhado em posição de súplica diante de uma dessas roletas, agarrado a ela, chorando copiosamente por não ter dinheiro para passar. Tive vontade de agarrá-lo pelo colarinho e gritar a plenos pulmões na sua cara: "Está louco homem!? A roleta está colocada entre o nada e coisa nenhuma! Dê a volta em torno dela!" - mas tive uma certeza íntima antes de fazê-lo de que não adiantaria de nada; ele queria passar pela roleta mas não tinha dinheiro o suficiente. Em vez disso, me aproximei e ofereci uns trocados e o homem aceitou com muita alegria e gratidão, me beijando o rosto repetidas vezes,e forçando sua face molhada de lágrimas contra a minha o que me causou a mais sincera sensação de asco que já senti na vida.

Depois disso pensei que o veria sumir na distância, me aliviando daquele fardo, mas em vez disso ele se deparou com outra roleta a menos de dez metros de distância a frente e como não tivesse nenhuma memória do que acabara de acontecer apalpou os bolsos com uma expressão de confusão no rosto para averiguar surpreso que não tinha dinheiro algum. Mais uma vez se atirou ao chão chorando aos soluços. De nada adiantaria eu ir até ele e lhe dar mais uns trocados porque depois dessa roleta haveria outra, e depois dessa outra mais uma, e mais uma, e mais uma, infinitamente.

Ele estava condenado.







terça-feira, 11 de maio de 2010

A mulher dentro do trem

 1
O que mais o incomodava era o fato de que se falasse com ela e construíssem algum laço além da rotineira troca de olhares tornar-se-iam "conhecidos", e dessa forma sempre teria de lhe falar mesmo que não tivesse vontade. Isso em especial era um problema já que para ele a fala dependia de uma disposição para tal, enquanto que o olhar não – este tinha um quê de compulsão. Ele detestava qualquer obrigação mútua que surgisse assim, de maneira velada, e como a maior parte dos relacionamentos humanos continha esses contratos invisíveis porém inevitáveis e pesadíssimos, ele evitava todo e qualquer contato com outras pessoas. Graças a esse temperamento esquivo sua fala cada vez mais atrofiava e seu olhar ganhava em expressividade e extensão sobre o mundo.
Esse não era o principal motivo para se desencorajar, afinal caso não quisesse encontrá-la poderia muito bem pegar o horário seguinte do trem que assim mesmo chegaria a tempo no trabalho e ficaria facilmente livre do estorvo da conversa. Mas não era isso, ele temia como nunca temera ser repelido. Dessa vez o medo era maior principalmente porque ela importava mais do que qualquer outra fantasia até então. Como toda fantasia nova importava mais que a anterior.
Havia se frustrado o suficiente isso é certo, mas na maior parte das vezes perdia de véspera. Não chegava a se arriscar até o fim, e a se expor à repulsa alheia – percebia por uma habilidade inexplicável os sinais contrários do mundo e das pessoas. Percebia em detalhes mínimos as negativas, os limites, as impossibilidades. Podia-se dizer até que tinha uma percepção apuradíssima das impossibilidades.
Enfim, conseguiu justificar a si mesmo seu ato e seu fracasso e se preparou para no dia seguinte abordá-la no trem (após algumas semanas de olhares mútuos) sob a justificativa de que esta mulher, por seu ar solene, seu olhar grave e postura digna era merecedora de portar seu “não” – tinha esperado toda a vida para ouvir um “não” dela. Propriamente dela, unicamente dela e não apenas de alguém como ela.
Mas ela não disse não.

2
Ele sentou-se ao seu lado e após muitas estações de tremores e suor frio, finalmente tomou coragem e lhe dirigiu a palavra com a voz sussurrada, trêmula e falha da insegurança: “Moça, iria te incomodar se a gente conversasse um pouco?”. (A subserviência da proposição se deve tanto a sua timidez e baixa auto-estima quanto à consideração de que ela era algo estranhamente sobrenatural pelo que deixava transparecer seus olhos e sua postura.)
Ela respondeu que não seria incômodo nenhum, também com imensa timidez demonstrada pelo seu olhar esquivo e tremores labiais enquanto falava. Assim como a dele, sua voz era baixa, e foi um milagre que tivessem conseguido se comunicar naquele trem barulhento. Na verdade várias vezes ele não conseguiu escutá-la e havia apenas assentido com a cabeça por vergonha de fazê-la se repetir, e também pela intuição de que isso de nada adiantaria uma vez que se quisesse entender tudo que ela dizia teria que pedir muitas vezes que ela se repetisse e isso seria ridículo e descabido. Ele teve muita vergonha por enganá-la assim, fingindo atenção quando não escutava nada do que dizia por conta do barulho que fazia o trem. É claro que só ele sustentava a ilusão de que ela não havia percebido que ele não escutava nada do que ela dizia e apenas balançava a cabeça em concordância em um gesto de simpatia.
De imediato a timidez dela o atraiu. Primeiro pelo contraste causado pelo fato de a portadora da timidez ser uma mulher tão bonita com uma aparência que sugeria sofisticação e elegância. Para ele a timidez era propriedade de pessoas deformadas, esquisitas, mal acabadas, ou mal ajambradas. Em segundo lugar a timidez o atraía porque trazia às pessoas uma aura de desamparo e isso lhe despertava enorme comoção, e ele nunca soubera muito bem separar qualquer tipo de afeto da compaixão. Os tímidos eram irresistíveis aos seus olhos especialmente porque muitos aspectos da sua personalidade eram secretos, e por isso, raríssimos, sendo possível acessar tais segredos apenas com muito custo e após muito tempo. A sua intimidade indevassável podia revelar continentes inteiros, vastos e ricos de trejeitos, olhares e expressões que não se mostravam ao vulgo e ficavam por assim dizer guardados, para aqueles poucos que conseguissem descobrir esse tesouro escondido sob camadas e mais camadas de desconfiança em relação às outras pessoas e, principalmente, desconfiança em relação a si próprio.
Trocaram poucas palavras, os silêncios foram longos, mas o agradou que ela também estivesse nervosa, sentiu-se mais influente.
3
Ela o avisara na conversa do dia anterior o horário do trem que pegaria no dia seguinte e seria mais tarde que o habitual e ele lamentou muito por ter despertado atrasado nessa manhã. Seu atraso o obrigaria a pegar o mesmo trem que ela, e essa possibilidade o desanimou profundamente. Sua irritação era ainda maior do que aquela que sentia todas as vezes que se atrasava no emprego. O atraso no trabalho lhe pareceu um problema menor diante do fato de que ela poderia pensar que ele teria pego esse horário do trem propositadamente para encontrá-la. Essa idéia o causava repulsa não por estar exposto aos jogos de poder ordinários que existem entre homens e mulheres – ele ignorava isso tudo – mas principalmente porque esse gesto poderia revelar um comportamento obsessivo de sua parte quando na verdade tinha sido provocado pelo acaso. Ele não queria demonstrar obsessão justamente porque era essa a idéia que fazia sobre o amor; um esforço obsessivo em reforçar o afeto sobre uma mesma pessoa; e esse ainda não era o caso, por mais que aquela mulher o atraísse.
Tratou logo de encontrar um lugar discreto no trem, se acomodar e fingir que dormia mas seu olhar compulsivo buscou em volta para ver se ela estava lá, e se decepcionou por não encontrá-la. Ela embarcou no trem algumas estações a frente e ele ao avistá-la recuou e se escondeu como uma criança. Dormiu boa parte do trajeto mas não resistiu em dar umas olhadelas em sua direção e foi numa dessas que se sentiu flagrado recuando rápido a cabeça à posição original longe do olhar dela com um gesto um pouco ridículo.
Depois que se levantou para saltar em sua estação ainda olhou mais uma vez e desceu do trem fingindo distração. Caminhou ao longo da estação em direção à saída com a cabeça baixa acompanhando a linha amarela, e talvez numa ilusão, percebeu que ela virara a cabeça para olhá-lo quando a janela do trem passou ao seu lado.
No dia seguinte a encontrou no trem, e mais uma vez hesitou em aproximar-se, deixando-se inclusive estar de pé alguns metros a frente no vagão de costas para ela, esperando que um lugar ao seu lado vagasse, para aí sim chegar perto, cumprimentá-la e se sentar. Apenas muito tempo depois pôde calcular o quanto essa atitude parecia estranha e decidiu com muita firmeza que da próxima vez entraria no trem antes dela e se sentaria ao seu alcance, caso ela sentasse ao seu lado conversariam, caso contrário não a procuraria mais deixando que sua estranheza parecesse aleatória e não apenas uma puerilidade.
Mais uma vez a conversa foi esparsa, e ele se incomodou com isso por mais que seu temperamento a essa altura da vida já o fizesse entender, estimar e apreciar os silêncios significativos que existem em uma conversa. Apesar de ter aprendido a se fazer presente em silêncio não conseguia fazer isso com ela, e quando dizia alguma coisa suas falas eram enfadonhas, sem sentido e desconexas, e ele culpava o trem por isso. A barulheira infernal da máquina e a dificuldade em escutar as respostas dela o faziam perder o tempo da conversa, interrompê-la enquanto ela falava, e a dizer coisas torpes e desnecessárias. Logo resolveu calar-se para ver se ela se colocava. Mas ela não disse nada e seguiram por muitas estações sob o incômodo silêncio barulhento do trem.
Ele chegou a duvidar se deveria falar com ela de novo mas na hora de se despedirem ela o desejou um bom dia de trabalho ao que ele respondeu desculpando-se mais uma vez pelo incômodo causado por sua companhia – demonstrando como da primeira vez em que se falaram fraqueza e subserviência, um efeito até compreensível após o longo tempo que passaram em silêncio lado a lado – e as últimas palavras dela antes que ele descesse finalmente do trem foram ditas fitando-o dentro dos olhos (coisa que ela raramente fazia) com expressa ternura no semblante e no olhar: “Que isso L., incômodo nenhum”.
Isso reascendeu seu ânimo, e fez de novo brotar-lhe a idéia de convidá-la a um encontro em outro lugar que não fosse aquele trem sujo, feio, desconfortável, decadente e barulhento – mas seguiu com sua convicção de que só o faria caso ela o buscasse e se sentasse ao seu lado no trem. De primeiro essa idéia lhe pareceu precipitada e ainda mais descabida pelo fato de que ele não conseguira nem ao menos estabelecer uma conversa normal com ela mas a lembrança da ternura com que ela refutou sua auto-depreciação mudou o modo como via as coisas. Apesar de só terem conversado duas vezes e de ter sido desastroso talvez se ela o buscasse e se isso lhe emprestasse segurança e uma voz fluente com assuntos interessantes, talvez, somente assim, se animasse a convidá-la para fora daquele troço de metal.
Na volta do trabalho, depois de saltar do trem e enquanto esperava a condução para casa no ponto de ônibus, resolveu contar quantas pessoas passavam tirando meleca num intervalo de dez minutos. Três foi o total computado, e enquanto contava pensou se ela percebia toda sua estranheza como o indício da inexperiência juvenil de um tolo apaixonado. Essa idéia o revoltou profundamente porque se enxergava como um homem sério e pleno de sentido, e aquele era apenas um lapso causado por uma série de incidentes e situações inesperadas e sobre as quais não era possível ter preparo. De repente se percebeu justificando-se a si mesmo, e isso só faria sentido para um homem pleno de sentido se ele fosse uma personagem e estivesse vivendo uma fantasia literária.

4
Encontrou-a na semana seguinte, e ela é que veio até ele, o que o emprestou um pouco de coragem. Ela já chegou se desculpando pela última vez em que tinham se visto e isso o colocou em uma posição favorável às suas intenções de convidá-la a um encontro fora do trem. Não compreendendo ele retrucou perguntando o motivo das desculpas e ela respondeu dizendo que se ele se desculpara por talvez tê-la incomodado então ela também tinha de fazê-lo. Foi um pedido de desculpas formal e cortês, genérico, mas no estado em que estava ele nunca conseguiria enxergar assim.
Foram conversando de novo de maneira esparsa, mas dessa vez ele se sentia mais confiante e a conversa fluiu melhor. Ele fez gracejos, sorriu e a fez sorrir. Estrategicamente deixou o convite para o final da viagem para o caso de ouvir uma negativa não ter de suportar por muito tempo a situação vexante.
Quando estavam chegando na estação em que ele saltaria, perguntou a ela se poderiam se encontrar em um lugar menos barulhento e menos desagradável que aquele trem velho e sujo que os unia. Antes que ela pudesse responder um forte estrondo acompanhado de um tranco arremessaram o trem para fora dos trilhos. Tombado de lado e descarrilado o trem ainda deslizou por alguns metros até parar completamente.
Ele escalou o vagão até a janela que agora ficava em cima e saiu para ver o que tinha acontecido. No horizonte fazendo a curva um dragão escurecia o sol com sua enorme asa negra. Ao terminar sua manobra a besta voltava em direção ao vagão tombado com sua bocarra aberta preparando-se para lançar um jorro de chamas sobre as pessoas.
Sem hesitar ele saltou do alto do vagão, colheu no chão um pedaço de ferro em forma de lança que havia soltado do trem quando ele descarrilou e cravou na barriga do dragão aproveitando o rasante mortal da fera. Do buraco do abdome do dragão saiu fogo em vez de sangue e uma labareda devorou todo seu corpo fazendo-o se transformar em cinza púrpura que choveu sobre os espectadores atônitos. Quando terminou ele olhou em volta avaliando o efeito da sua ação. De nada adiantou seu ato heróico porque a mulher havia sido esmagada quando o trem tombou e seu corpo jazia debaixo do pesado vagão como ele pôde constatar mais tarde.

5
Ou isso aconteceu ou ela simplesmente respondeu que era casada e que portanto não poderia se encontrar com ele em outro lugar e tudo se resumiria àquelas conversas no trem. Essa resposta geraria nele a reação imediata de agradecer mentalmente por poder saltar logo na próxima estação e por ter a opção de pegar o horário seguinte do trem nos dias vindouros e nunca mais encontrá-la para o resto de sua vida. Ou ainda ela poderia ter dado uma resposta evasiva fazendo a situação se estender indefinidamente entre tímidos avanços e consideráveis retrocessos.

A escolha de qualquer um dos finais não faz a menor diferença.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Os colecionadores

Minha vida foi repleta de amores natimortos, e eu os guardo com o zelo de um colecionador de insetos. Há quem considere isso de mau gosto, que prefira o esquecimento, mas eu não.
Quando era mais novo eu me arrepiava de terror em laboratórios com prateleiras de fetos e animais contidos em vidros de conserva, agora sou eu que envidro memórias de desencontros. Aquilo era mesmo desnecessário, já que tinha o objetivo de educar as crianças e compreender os mecanismos da vida. Como se a vida coubesse em um frasco de vidro. O amor também não cabe.
Mas o que move um colecionador é mais uma compulsão que uma vontade de compreensão ou de organizar didaticamente as coisas. Existe o prazer do todo, o sentido dado pela repetição, a harmonia do constante. Isso reconforta e diminui a sensação de absurdo e por isso, talvez seja sintoma de um mundo sem sentido.
Eu sempre admirei os colecionadores, mas nunca tive essa disciplina e obstinação, até perceber que não se trata de uma escolha ou de uma vontade, mas antes de algo que se impõe externamente, logo, compulsivo. O colecionador não escolhe aquilo que ele coleciona, antes aquilo que ele coleciona é que o escolhe.
Por isso a compulsão, por isso um sentido que é maior que a vida do colecionador, que engloba a sua existência e assim, não pode ser evitado. A coleção cria o sentido da vida do colecionador, ele é colecionado pelas coisas e não o contrário.
Eu tinha muita vontade de colecionar as coisas, mas não conseguia, porque não havia descoberto a coisa que me colecionava. Agora eu sei, sou uma coleção de desencontros. Reconforta ter um sentido, ter descoberto minha coleção - agora eu sou um inseto numa caixa.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Prece da Ausência.

Eu queria que tudo desaparecesse agora. Eu queria que o mundo cessasse de existir num piscar de olhos. Eu queria que tudo sumisse num sussurro. Eu queria que a cachoeira parasse de correr e que o céu escurecesse e eu queria esse vazio, esse silêncio, porque ele já habita dentro de mim. Eu queria a escuridão, eu queria a ausência do meu corpo pra que ele não sentisse a ausência do seu. Eu queria que tudo acabasse rápida e subitamente para não deixar nem suspeita nem lembrança de existência. Eu queria que tudo sumisse, eu queria o vazio.
Eu queria que não tivesse mundo, eu queria que nunca tivesse havido mundo. Eu queria a paz do eterno, da eterna ausência de tudo. Eu queria o nada: nada pra frente, nada pra trás, nada presente, nada ausente. Eu queria o nada infinitamente em todas as direções.

domingo, 25 de abril de 2010

Contam as estrelas que o arvoredo espesso sombreava um segredo. Esse segredo estava tão bem escondido que dele só sobraram as migalhas no canto da cotovia e no lamento das corujas.
Qualquer um que souber costurar as vozes dos pássaros o adivinhará mas os últimos que sabiam já desapareceram há muitos anos. Resta então adivinhá-lo em um olhar desprevenido de uma águia, que às vezes também olha perdida sem saber no que pensar.
Só assim - quando a águia olha fixo, porém sem mirar nenhuma presa - é possível vislumbrar a mensagem. No reflexo desse olhar está descrita a nossa invenção; que somos todos ficções da natureza.
Do lado de cá também podemos ver outras coisas mais. Podemos ver lampejos do eterno; porque as aves desse tipo sofrem mil mutações nos mergulhos mortais pelo ar a cada farfalhar de pena, mas seu olho permanece de um cristalino impassível.
Depois de dito tudo isso, uma vez mais contaram as estrelas e o total computado foi algo completamente diferente do início levantando a suspeita de que era o céu que escurecia algum segredo.
Da última vez que eu conferi o céu ainda estava suspenso e minha barba ainda crescia; mas quem nesse mundo vai acreditar em mim se eu sou só o sonho de uma borboleta?

quarta-feira, 24 de março de 2010

Legião.


Quando estou em grupo e mesmo assim insisto em agir de próprio mote; de desviar para caminhos outros, de escolher a solidão, sou censurado como individualista. Mal sabem eles que não há nada de individual em minhas escolhas, que minhas vontades não me pertencem. Já questionaram minha solitude. Já ralharam dizendo que todo mundo precisa de alguém para cuidar e ser cuidado, e que é dever de cada um ser responsável por outro, nem que seja um outro qualquer.

Eu fui compelido a responder a verdade.

A verdade é que eu tenho que cuidar de alguém; uma criança. Ela é tão caprichosa em suas vontades que toma muito do meu tempo e minha atenção, e isso não é de todo ruim porque me sinto só e abandonado sem sua risada e suas idéias sem pé nem cabeça. Tenho que ir onde ela quer e quando ela quer, mas já disse que isso pra mim não é desprazer. Fico triste quando passo o dia longe dela, trabalhando ou tendo que atender a outras pessoas. De todos quem me faz falta é ela que transforma meu cotidiano em coisa leve e suportável. Preciso cuidar dela pra que não vá embora – essa criança que mora dentro de mim.

E além dessa criança há também um senhorzinho que às vezes me assalta com sua sabedoria; e eu, acato sua palavra. Seus silêncios são vastos como a grande muralha; o que faz com que suas palavras sejam tão plenas de sentido – flor que brota no fundo infinitamente pedregoso. Nada do que diz é descabido apesar de ser sempre inesperado; tamanha a sua simplicidade diante da perversão das coisas. Assim, tudo que me diz encaixa na ordem do mundo. Eu preciso de silêncio e isolamento para escutá-lo, porque a solidão é alimento necessário para sua lucidez antecipar o inevitável em conselhos que aplacam a indignação e a revolta diante das circunstâncias da vida. Tranqüilo e plácido, ele vem a mim.

Além desses ainda têm o monge, o pirata, o índio, o mímico e muitos outros. Como posso eu dar conta de outras pessoas se tenho que administrar essa legião dentro de mim?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Rio.

Ele, deitado na pedra do rio, descansando, pôde entrar em contato com uma verdade que traz consigo a idade do céu e a pungência da vida. E foi tudo pelos respingos d’água.
Percebeu que os respingos não o atingiam de maneira regular, antes acertavam-no em quantidades diferentes e em partes diferentes do corpo. Pensou por um instante em como a água fluindo sempre a mesma e sempre outra em volume estável como pulsação sanguínea por um leito milenar de pedras arredondadas poderia produzir respingos sempre desiguais. Confundiu-se com pensamentos lusco-fuscos. Não conhecia tão bem o rio pelo qual saltava de pedra em pedra usando as mãos e os braços como um símio. Aquele emaranhado de água espumante e pedras de todas as formas e texturas enfim, perdia o sentido.
Não reconhecia o rio por um breve instante. Alguma coisa estava ali, e só agora percebia. Uma presença espreitava.
De olhos fechados o temor se dissipava e ele se acostumou com a respiração acelerada do rio. De olhos fechados ele pôde ouvir sua voz grave e distante.
A voz lhe contou sobre todos os tempos, pois o rio é o passado em seu leito, o futuro em seu devir, e está sempre presente em suas águas. O rio lhe contou do tempo em que a memória não alcança, nos quais a terra era feita de fogo e fúria, e criaturas míticas caminhavam de baixo do sol com suas dimensões épicas sem serem constrangidas ou incomodadas. Contou-lhe do nascimento do seu povo, tão antigo como o vento, aparentado das árvores, com a pele da cor da terra e os olhos da cor do firmamento. Também contou sobre a vinda dos homens com suas armas, seus machados, suas cruzes e suas casas, e lhe revelou que eles trariam a escravidão, ruína e trevas ao seu povo.
Assim soube algo que já havia intuído – o movimento perpétuo do rio, como é infima sua finitude diante dele, e como é eterno e extenso o presente.
Ele se lembrou quando escutou o rio a contar essas coisas, lembrou como quem acaba de aprender uma verdade inédita.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vovô Zequinha


O diafragma de uma câmera fotográfica abre e fecha em poucos milisegundos para a luz entrar e registrar a imagem no filme. Esse pequeno momento que registra a imagem poderia ser uma vida. Essa rápida abertura durou 84 anos, a vida do meu avô foi a piscadela de uma máquina fotográfica.
Eu queria ter aprendido a jogar no bicho com ele e a apostar nos cavalinhos. Ele era um ótimo apostador, um jogador de primeira. Nos últimos dias me disse: "O jogo não é para se ganhar, o  jogo é para se jogar, ganhar é um acidente de percurso que acontece as vezes. O jogo existe para ser jogado, só isso." E a vida existe para ser vivida, só isso, ele me ensinava. Dele ficou meu gosto pelas cartas, meu bigode, e o vício que o levou pra longe, que o fez encantar aos 84. Eu queria ser meu avô. Eu queria seu sorriso doce e sua calma diante da vida. Eu queria seu senso de humor rabugento e inesperado, que divertia surpreendendo, sempre.

Nos últimos tempos o seu gosto por faroestes italianos e meu gosto por cinema nos aproximou ainda mais. Eram ótimas as tardes de filme com cerveja e queijo de aperitivo.

Eu queria ter tido tempo e dinheiro para levá-lo para um passeio naquele cassino de Viña del Mar. Para pagar um bom barbeiro que lhe desse um atendimento especial e lhe comprar um terno de bom corte em um alfaite. Queria vê-lo elegante mais uma vez, jogando cartas naquele lugar. Não houve tempo, mas tudo bem.

Meu avô faleceu dia 8 de janeiro. Dia do fotógrago, sua profissão a vida inteira. O diafragma aberto há alguns milisegundos se fechou e registrou uma imagem: seu sorriso doce. Para sempre numa foto.