segunda-feira, 31 de maio de 2010

O último pecado da humanidade

No mundo de 2133 d.C. todas as medidas paliativas tomadas no último século para contornar a questão ambiental foram consideradas com seu prazo de eficácia expirado. Se tornou nececessário uma solução final.
Nesta sociedade futurista a elite intelectual e política conseguiu com medidas saneadoras resolver boa parte dos problemas das grandes cidades. Com a reciclagem de todo material produzido o disperdício tangenciava o limite mínimo e assim, a Terra se recuperava a passos largos do grande dano causado pelas guerras e a equivocada reconstrução que se seguiu na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do XXI. Mas a recuperação não parecia suficiente.
A principal questão política pendente era a do consumo da carne, e isso incluía eliminar de vez a produção baseada em pequenas comunidades camponesas –  que por um lado não conseguiam satisfazer as necessidades do mercado por produtos de origem vegetal devido à modéstia do volume de sua produção, e por outro conservavam o bárbaro e vergonhoso ritual de sacrifício de seres vivos e consumo de carne.
Este novo mundo levou às últimas consequências determinados princípios da sociedade moderna que haviam sido deixados de lado ou abandonados por pura preguiça e falta de determinação das gerações anteriores, e principalmente, pelos freios morais que foram pouco a pouco sendo eliminados graças à ajuda e apoio da classe artística antenada aos novos valores da sociedade do futuro. Inesperadamente, foram as intervenções artísticas nas ruas que conseguiram com avançados métodos publicitários reformar os espíritos para a nova ordem.
O princípio de transparência na vida, por exemplo, havia sido realizado com a cobertura completa das ações de todos os indivíduos com câmeras, scanners e sensores, que captavam os mínimos gestos e transmitiam em tempo real para todo planeta, para quem quisesse assistir o que cada um fazia em cada momento. Isso já havia sido previsto por crônicas do século XX, porém, ninguém poderia prever que os próprios cidadãos observariam a normalidade de seus congêneros e corrigiriam os desvios agindo da maneira adequada para atenuar seus efeitos e detectar sua origem reeducando o indivíduo em questão.
Não havia nenhum instituto ou departamento encarregado da vigilância e normatização do comportamento dos indivíduos, a própria sociedade se encarregava disso colocando em ação amigos, familiares, colegas de trabalho, e até pessoas desconhecidas poderiam de maneira bem sutil sugerir a alteração adequada para trazer de volta o concidadão à norma. A participação na restauração de um concidadão é considerada uma honra e motivo de alegria.
Por outro lado a privacidade e a individualidade eram resguardadas e estimuladas ao extremo, ao ponto de nos transportes públicos serem implantadas cabines para separar os assentos, isolando-os herméticamente, de modo que os passageiros não se encostassem, não ouvissem a mesma música, não respirassem o mesmo ar, e era dada até a opção de alterar o painel que mostrava a paisagem. Cada usuário poderia carregar as configurações de sua preferência a partir de seu cartão de identidade eletrônico. Um dispositivo semelhante também havia sido intalado nos elevadores, com o incoveniente de aumentar o espaço ocupado por cada passageiro obrigando os engenheiros a aumentarem o tamanho interno dos elevadores para não diminuir a lotação.
Nas grandes cidades a paz e consenso reinavam e o apoio era total em relação às intenções do governo.  A aplicação dos ideais de pureza corporal e espiritual, a higienização dos espaços públicos e privados e  formulação de uma ética verdadeiramente humanista praticada com regozijo por todos os cidadãos tiveram como efeito o fim das desigualdades sociais e da exploração exarcebada que em outros tempos degradava a condição humana e impossibilitaca a vida digna de todos.
Mas existia ainda o problema das comunidades camponesas e seu modo de vida que se mantinha o mesmo desde tempos imemoriais. Desde antes das guerras e da reconstrução, desde muito antes do advento da imundice industrial, desde antes da invenção do Estado e da sociedade civilizada. Teimosamente estes indivíduos se mantinham imunes ao progresso, seguiam retrógrados e agarrados às suas tradições, com seu modo de vida sujo, ultrapassado e promíscuo se reproduzindo em progressão exponencial; irracionalmente colocando em risco a existência de toda a espécie humana e o equilíbrio ambiental da Terra, conquistado a tão duras penas. Pareciam, por uma inteligência diabólica e coletiva, querer superar a baixa expectativa de vida com a quantidade de filhos.
Estima-se que com todos os avanços da engenharia genética e da medicina cirúrgica a média de estimativa de vida de um habitante das cidades seja até quatro vezes maior que a de um habitante das aldeias. Mesmo assim, vivendo menos, eles mantinham persistentemente seu modo de vida, como se essa opção fosse anterior à sua tomada de consciência do mundo, anterior ao seu nascimento e fosse mais dura que aço; inquebrável. Optavam por uma existência suja e coletiva e não por individualmente viverem mais, era inexplicável porque não era uma opção e sim uma compulsão. Eles viviam compulsivamente, sem que a vida fosse um gesto da vontade, uma escolha.
Muitas soluções foram pensadas. A migração para as cidades era largamente estimulada e toda a estrutura necessária para se assentar à nova situação e se adaptar a nova vida era garantida pelo governo. Muitos optavam por vir às cidades, e só assim era possível entrar no futuro, por opção e mote próprio, uma vez que a adesão compulsória é um método bárbaro e típico da vida que levavam antes da grande reforma e não do novo mundo que se abre na alvorada do futuro. Era motivo de orgulho que não houvesse registro de nenhum caso de pessoa que se arrependesse e escolhesse voltar às aldeias depois de ter migrado para as cidades. Para isso contribuiam os sofisticados e sutis mecanismos de conformação à nova ordem, como a imperceptível reeducação promovida pelos próprios concidadãos.
Também era oferecido a qualquer morador das aldeias, cirurgias para esterelização de homens, mulheres e até crianças que se voluntariassem, porém, como tudo dependia da vontade e escolha dos aldeões toda solução tinha o limite de a maioria da população continuar compulsivamente a viver como seus pais e avós.
No final das contas considerou-se que de uma maneira ou de outra a existência dessas aldeias deveria cessar assim que possível. Apesar de não ser muito humanista parecia que a única saída que restava era exterminar essa população e como a avançada tecnologia das cidades permitia, isso seria feito de uma só vez e sem sofrimento. A conversão forçada dos habitantes das aldeias parecia aos moradores das cidades algo bárbaro e contraditório com seus princípios de modo que o extermínio restava como opção menos ofensiva.
Muitas décadas antes um morador das cidades já havia previsto essa solução e exposto sua opinião, de que ela era desumana. Por outras contestações esse habitante havia se tornado um incômodo e era considerado por uns um perverso e por outros um moralista retrógrado. Ele havia sido o último morador das cidades a migrar por livre e espontânea vontade para as aldeias e antes disso deixou escrito um grande tratado em que denunciava com conceitos antiquíssimos – de mais de duzentos anos de existência – que a sociedade presente era uma utopia burguesa e que ela tentava a todo custo ignorar a humanidade, reificando o mundo das mercadorias e substituindo o trabalho humano por máquinas para não se identificar com os produtos gerados. Essa versão deturpada da sociedade pelo olhar desse homem louco foi refutada com facilidade pelas mentes mais pródigas da sociedade ao demonstrarem que a arte e o pensamento ainda eram produtos gerados pelos humanos, e apenas por eles, e que apenas esses produtos realmente refletiam a natureza da alma humana e não o vil trabalho manual que existia nas antigas fábricas.
Finalmente uma bomba foi produzida de modo que quando fosse acionada transformaria as toxinas existentes em organismos consumidores de carne vermelha em um veneno que seria responsável pela morte das populações das aldeias. Os argumentos eram justos; no passado os ancestrais primitivos da sociedade já haviam matado por Deus e pela Democracia e nos tempos limpos esses eram considerados princípios guiados por interesses parciais ou impregnados de misticismo. Dessa vez não, a mortandade era pelo bem do futuro da humanidade e da vida na Terra. Quanto mais digno e justo o motivo do ataque maior a fúria dos agressores. Mais ainda, na população em geral, a mortandade era justificada pela imoralidade do consumo de carne e do sacrifício contínuo e perpétuo de seres vivos. Com um golpe só seriam carrascos dessa aberração.
A decisão foi posta em prática no dia __ de _____ de 2133 d.C. com o pequeno ajuste de se utilizar potentes bombas incendiárias em vez daquela projetada inicialmente. O ajuste se justifica pelo efeito estético que causaria e para melhor se adequar à mitologia das aldeias que defendia que o mundo acabaria em fogo. A mudança também  é compreensível uma vez que os moradores das cidades eram portadores de um elevadíssimo senso estético e queriam fazer do evento que seria transmitido em tempo real para todo mundo um espetáculo de luzes e cores. Pela potência das bombas a morte seria igualmente instantânea e a destruição colateral é justificável diante da beleza do acontecimento e do simbolismo do fogaréu ser o parteiro desse novo tempo que se iniciaria. A equipe artística encarregada de registrar e televisionar a destruição das aldeias resolveu por uma homenagem à obsoleta arte do cinema do século XX; usando como trilha musical para o espetáculo a música Surfin´ Bird gravada em 1964 por um grupo chamado The Trashmen e utilizada em filmes de guerra nessa época.
Depois desse último sacrifício um futuro brilhante aguardava os espíritos elevados das cidades e seu ideal de pureza, ordem e perfeição poderia reinar sem máculas. Esse foi o último pecado da humanidade.

( The Trashmen - Surfin Bird : http://www.youtube.com/watch?v=ZThquH5t0ow )

quinta-feira, 20 de maio de 2010


Eu queria dizer que ainda iria lhe aparar se você caísse. Queria que soubesse que não é por cuidado, mas por querer te tocar com a palma da minha mão. Mas não havia mais nada que pudesse ser dito. O silêncio era maior; infinito separando planetas que nunca vão se encontrar por girar em órbitas diferentes.

Se não houvesse todo o engano e desencontro que houve, se não tivesse fingido papéis que não me cabem – como a tolice de querer ser regente da orquestra do cosmos – mesmo assim passaríamos distante, mesmo assim estaríamos em freqüências distintas.

Mas as forças não têm compaixão ou simpatia pelos sentimentos humanos, ao menor sinal de fraqueza desterraram o sentido; e ele exilado ficou, para sempre, sem a possibilidade de comunicação.  Mesmo assim eu escrevi em um papel e enterrei o tratado de uma linha sobre o desencontro, para compor o imponente acervo poético das minhocas: “Eu ainda te amo.”

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Roletas

Hoje o ônibus estava diferente; havia roletas demais, uma atrás da outra, enfileiradas no corredor entre os assentos. E também as barras de ferro para as pessoas se segurarem estavam colocadas de maneira estranha; na parede lateral interna, atravessando as janelas na horizontal. Quando olhei para o teto, percebi que ali também havia algo diferente; bancos pregados de cabeça para baixo. Parecia que as máquinas que montam ônibus tinham enlouquecido.

Quando desci do ônibus eu vi que o mundo estava repleto de roletas de ônibus por todos os lados; nas calçadas, no meio das ruas, e colocadas de lado nas paredes e pilastras. Eram roletas sem sentido, qualquer pessoa poderia dar a volta nelas e também não separavam coisa alguma mas mesmo assim todos passavam por elas e depositavam o dinheiro em urnas acopladas.

Vi até um homem que estava ajoelhado em posição de súplica diante de uma dessas roletas, agarrado a ela, chorando copiosamente por não ter dinheiro para passar. Tive vontade de agarrá-lo pelo colarinho e gritar a plenos pulmões na sua cara: "Está louco homem!? A roleta está colocada entre o nada e coisa nenhuma! Dê a volta em torno dela!" - mas tive uma certeza íntima antes de fazê-lo de que não adiantaria de nada; ele queria passar pela roleta mas não tinha dinheiro o suficiente. Em vez disso, me aproximei e ofereci uns trocados e o homem aceitou com muita alegria e gratidão, me beijando o rosto repetidas vezes,e forçando sua face molhada de lágrimas contra a minha o que me causou a mais sincera sensação de asco que já senti na vida.

Depois disso pensei que o veria sumir na distância, me aliviando daquele fardo, mas em vez disso ele se deparou com outra roleta a menos de dez metros de distância a frente e como não tivesse nenhuma memória do que acabara de acontecer apalpou os bolsos com uma expressão de confusão no rosto para averiguar surpreso que não tinha dinheiro algum. Mais uma vez se atirou ao chão chorando aos soluços. De nada adiantaria eu ir até ele e lhe dar mais uns trocados porque depois dessa roleta haveria outra, e depois dessa outra mais uma, e mais uma, e mais uma, infinitamente.

Ele estava condenado.







terça-feira, 11 de maio de 2010

A mulher dentro do trem

 1
O que mais o incomodava era o fato de que se falasse com ela e construíssem algum laço além da rotineira troca de olhares tornar-se-iam "conhecidos", e dessa forma sempre teria de lhe falar mesmo que não tivesse vontade. Isso em especial era um problema já que para ele a fala dependia de uma disposição para tal, enquanto que o olhar não – este tinha um quê de compulsão. Ele detestava qualquer obrigação mútua que surgisse assim, de maneira velada, e como a maior parte dos relacionamentos humanos continha esses contratos invisíveis porém inevitáveis e pesadíssimos, ele evitava todo e qualquer contato com outras pessoas. Graças a esse temperamento esquivo sua fala cada vez mais atrofiava e seu olhar ganhava em expressividade e extensão sobre o mundo.
Esse não era o principal motivo para se desencorajar, afinal caso não quisesse encontrá-la poderia muito bem pegar o horário seguinte do trem que assim mesmo chegaria a tempo no trabalho e ficaria facilmente livre do estorvo da conversa. Mas não era isso, ele temia como nunca temera ser repelido. Dessa vez o medo era maior principalmente porque ela importava mais do que qualquer outra fantasia até então. Como toda fantasia nova importava mais que a anterior.
Havia se frustrado o suficiente isso é certo, mas na maior parte das vezes perdia de véspera. Não chegava a se arriscar até o fim, e a se expor à repulsa alheia – percebia por uma habilidade inexplicável os sinais contrários do mundo e das pessoas. Percebia em detalhes mínimos as negativas, os limites, as impossibilidades. Podia-se dizer até que tinha uma percepção apuradíssima das impossibilidades.
Enfim, conseguiu justificar a si mesmo seu ato e seu fracasso e se preparou para no dia seguinte abordá-la no trem (após algumas semanas de olhares mútuos) sob a justificativa de que esta mulher, por seu ar solene, seu olhar grave e postura digna era merecedora de portar seu “não” – tinha esperado toda a vida para ouvir um “não” dela. Propriamente dela, unicamente dela e não apenas de alguém como ela.
Mas ela não disse não.

2
Ele sentou-se ao seu lado e após muitas estações de tremores e suor frio, finalmente tomou coragem e lhe dirigiu a palavra com a voz sussurrada, trêmula e falha da insegurança: “Moça, iria te incomodar se a gente conversasse um pouco?”. (A subserviência da proposição se deve tanto a sua timidez e baixa auto-estima quanto à consideração de que ela era algo estranhamente sobrenatural pelo que deixava transparecer seus olhos e sua postura.)
Ela respondeu que não seria incômodo nenhum, também com imensa timidez demonstrada pelo seu olhar esquivo e tremores labiais enquanto falava. Assim como a dele, sua voz era baixa, e foi um milagre que tivessem conseguido se comunicar naquele trem barulhento. Na verdade várias vezes ele não conseguiu escutá-la e havia apenas assentido com a cabeça por vergonha de fazê-la se repetir, e também pela intuição de que isso de nada adiantaria uma vez que se quisesse entender tudo que ela dizia teria que pedir muitas vezes que ela se repetisse e isso seria ridículo e descabido. Ele teve muita vergonha por enganá-la assim, fingindo atenção quando não escutava nada do que dizia por conta do barulho que fazia o trem. É claro que só ele sustentava a ilusão de que ela não havia percebido que ele não escutava nada do que ela dizia e apenas balançava a cabeça em concordância em um gesto de simpatia.
De imediato a timidez dela o atraiu. Primeiro pelo contraste causado pelo fato de a portadora da timidez ser uma mulher tão bonita com uma aparência que sugeria sofisticação e elegância. Para ele a timidez era propriedade de pessoas deformadas, esquisitas, mal acabadas, ou mal ajambradas. Em segundo lugar a timidez o atraía porque trazia às pessoas uma aura de desamparo e isso lhe despertava enorme comoção, e ele nunca soubera muito bem separar qualquer tipo de afeto da compaixão. Os tímidos eram irresistíveis aos seus olhos especialmente porque muitos aspectos da sua personalidade eram secretos, e por isso, raríssimos, sendo possível acessar tais segredos apenas com muito custo e após muito tempo. A sua intimidade indevassável podia revelar continentes inteiros, vastos e ricos de trejeitos, olhares e expressões que não se mostravam ao vulgo e ficavam por assim dizer guardados, para aqueles poucos que conseguissem descobrir esse tesouro escondido sob camadas e mais camadas de desconfiança em relação às outras pessoas e, principalmente, desconfiança em relação a si próprio.
Trocaram poucas palavras, os silêncios foram longos, mas o agradou que ela também estivesse nervosa, sentiu-se mais influente.
3
Ela o avisara na conversa do dia anterior o horário do trem que pegaria no dia seguinte e seria mais tarde que o habitual e ele lamentou muito por ter despertado atrasado nessa manhã. Seu atraso o obrigaria a pegar o mesmo trem que ela, e essa possibilidade o desanimou profundamente. Sua irritação era ainda maior do que aquela que sentia todas as vezes que se atrasava no emprego. O atraso no trabalho lhe pareceu um problema menor diante do fato de que ela poderia pensar que ele teria pego esse horário do trem propositadamente para encontrá-la. Essa idéia o causava repulsa não por estar exposto aos jogos de poder ordinários que existem entre homens e mulheres – ele ignorava isso tudo – mas principalmente porque esse gesto poderia revelar um comportamento obsessivo de sua parte quando na verdade tinha sido provocado pelo acaso. Ele não queria demonstrar obsessão justamente porque era essa a idéia que fazia sobre o amor; um esforço obsessivo em reforçar o afeto sobre uma mesma pessoa; e esse ainda não era o caso, por mais que aquela mulher o atraísse.
Tratou logo de encontrar um lugar discreto no trem, se acomodar e fingir que dormia mas seu olhar compulsivo buscou em volta para ver se ela estava lá, e se decepcionou por não encontrá-la. Ela embarcou no trem algumas estações a frente e ele ao avistá-la recuou e se escondeu como uma criança. Dormiu boa parte do trajeto mas não resistiu em dar umas olhadelas em sua direção e foi numa dessas que se sentiu flagrado recuando rápido a cabeça à posição original longe do olhar dela com um gesto um pouco ridículo.
Depois que se levantou para saltar em sua estação ainda olhou mais uma vez e desceu do trem fingindo distração. Caminhou ao longo da estação em direção à saída com a cabeça baixa acompanhando a linha amarela, e talvez numa ilusão, percebeu que ela virara a cabeça para olhá-lo quando a janela do trem passou ao seu lado.
No dia seguinte a encontrou no trem, e mais uma vez hesitou em aproximar-se, deixando-se inclusive estar de pé alguns metros a frente no vagão de costas para ela, esperando que um lugar ao seu lado vagasse, para aí sim chegar perto, cumprimentá-la e se sentar. Apenas muito tempo depois pôde calcular o quanto essa atitude parecia estranha e decidiu com muita firmeza que da próxima vez entraria no trem antes dela e se sentaria ao seu alcance, caso ela sentasse ao seu lado conversariam, caso contrário não a procuraria mais deixando que sua estranheza parecesse aleatória e não apenas uma puerilidade.
Mais uma vez a conversa foi esparsa, e ele se incomodou com isso por mais que seu temperamento a essa altura da vida já o fizesse entender, estimar e apreciar os silêncios significativos que existem em uma conversa. Apesar de ter aprendido a se fazer presente em silêncio não conseguia fazer isso com ela, e quando dizia alguma coisa suas falas eram enfadonhas, sem sentido e desconexas, e ele culpava o trem por isso. A barulheira infernal da máquina e a dificuldade em escutar as respostas dela o faziam perder o tempo da conversa, interrompê-la enquanto ela falava, e a dizer coisas torpes e desnecessárias. Logo resolveu calar-se para ver se ela se colocava. Mas ela não disse nada e seguiram por muitas estações sob o incômodo silêncio barulhento do trem.
Ele chegou a duvidar se deveria falar com ela de novo mas na hora de se despedirem ela o desejou um bom dia de trabalho ao que ele respondeu desculpando-se mais uma vez pelo incômodo causado por sua companhia – demonstrando como da primeira vez em que se falaram fraqueza e subserviência, um efeito até compreensível após o longo tempo que passaram em silêncio lado a lado – e as últimas palavras dela antes que ele descesse finalmente do trem foram ditas fitando-o dentro dos olhos (coisa que ela raramente fazia) com expressa ternura no semblante e no olhar: “Que isso L., incômodo nenhum”.
Isso reascendeu seu ânimo, e fez de novo brotar-lhe a idéia de convidá-la a um encontro em outro lugar que não fosse aquele trem sujo, feio, desconfortável, decadente e barulhento – mas seguiu com sua convicção de que só o faria caso ela o buscasse e se sentasse ao seu lado no trem. De primeiro essa idéia lhe pareceu precipitada e ainda mais descabida pelo fato de que ele não conseguira nem ao menos estabelecer uma conversa normal com ela mas a lembrança da ternura com que ela refutou sua auto-depreciação mudou o modo como via as coisas. Apesar de só terem conversado duas vezes e de ter sido desastroso talvez se ela o buscasse e se isso lhe emprestasse segurança e uma voz fluente com assuntos interessantes, talvez, somente assim, se animasse a convidá-la para fora daquele troço de metal.
Na volta do trabalho, depois de saltar do trem e enquanto esperava a condução para casa no ponto de ônibus, resolveu contar quantas pessoas passavam tirando meleca num intervalo de dez minutos. Três foi o total computado, e enquanto contava pensou se ela percebia toda sua estranheza como o indício da inexperiência juvenil de um tolo apaixonado. Essa idéia o revoltou profundamente porque se enxergava como um homem sério e pleno de sentido, e aquele era apenas um lapso causado por uma série de incidentes e situações inesperadas e sobre as quais não era possível ter preparo. De repente se percebeu justificando-se a si mesmo, e isso só faria sentido para um homem pleno de sentido se ele fosse uma personagem e estivesse vivendo uma fantasia literária.

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Encontrou-a na semana seguinte, e ela é que veio até ele, o que o emprestou um pouco de coragem. Ela já chegou se desculpando pela última vez em que tinham se visto e isso o colocou em uma posição favorável às suas intenções de convidá-la a um encontro fora do trem. Não compreendendo ele retrucou perguntando o motivo das desculpas e ela respondeu dizendo que se ele se desculpara por talvez tê-la incomodado então ela também tinha de fazê-lo. Foi um pedido de desculpas formal e cortês, genérico, mas no estado em que estava ele nunca conseguiria enxergar assim.
Foram conversando de novo de maneira esparsa, mas dessa vez ele se sentia mais confiante e a conversa fluiu melhor. Ele fez gracejos, sorriu e a fez sorrir. Estrategicamente deixou o convite para o final da viagem para o caso de ouvir uma negativa não ter de suportar por muito tempo a situação vexante.
Quando estavam chegando na estação em que ele saltaria, perguntou a ela se poderiam se encontrar em um lugar menos barulhento e menos desagradável que aquele trem velho e sujo que os unia. Antes que ela pudesse responder um forte estrondo acompanhado de um tranco arremessaram o trem para fora dos trilhos. Tombado de lado e descarrilado o trem ainda deslizou por alguns metros até parar completamente.
Ele escalou o vagão até a janela que agora ficava em cima e saiu para ver o que tinha acontecido. No horizonte fazendo a curva um dragão escurecia o sol com sua enorme asa negra. Ao terminar sua manobra a besta voltava em direção ao vagão tombado com sua bocarra aberta preparando-se para lançar um jorro de chamas sobre as pessoas.
Sem hesitar ele saltou do alto do vagão, colheu no chão um pedaço de ferro em forma de lança que havia soltado do trem quando ele descarrilou e cravou na barriga do dragão aproveitando o rasante mortal da fera. Do buraco do abdome do dragão saiu fogo em vez de sangue e uma labareda devorou todo seu corpo fazendo-o se transformar em cinza púrpura que choveu sobre os espectadores atônitos. Quando terminou ele olhou em volta avaliando o efeito da sua ação. De nada adiantou seu ato heróico porque a mulher havia sido esmagada quando o trem tombou e seu corpo jazia debaixo do pesado vagão como ele pôde constatar mais tarde.

5
Ou isso aconteceu ou ela simplesmente respondeu que era casada e que portanto não poderia se encontrar com ele em outro lugar e tudo se resumiria àquelas conversas no trem. Essa resposta geraria nele a reação imediata de agradecer mentalmente por poder saltar logo na próxima estação e por ter a opção de pegar o horário seguinte do trem nos dias vindouros e nunca mais encontrá-la para o resto de sua vida. Ou ainda ela poderia ter dado uma resposta evasiva fazendo a situação se estender indefinidamente entre tímidos avanços e consideráveis retrocessos.

A escolha de qualquer um dos finais não faz a menor diferença.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Os colecionadores

Minha vida foi repleta de amores natimortos, e eu os guardo com o zelo de um colecionador de insetos. Há quem considere isso de mau gosto, que prefira o esquecimento, mas eu não.
Quando era mais novo eu me arrepiava de terror em laboratórios com prateleiras de fetos e animais contidos em vidros de conserva, agora sou eu que envidro memórias de desencontros. Aquilo era mesmo desnecessário, já que tinha o objetivo de educar as crianças e compreender os mecanismos da vida. Como se a vida coubesse em um frasco de vidro. O amor também não cabe.
Mas o que move um colecionador é mais uma compulsão que uma vontade de compreensão ou de organizar didaticamente as coisas. Existe o prazer do todo, o sentido dado pela repetição, a harmonia do constante. Isso reconforta e diminui a sensação de absurdo e por isso, talvez seja sintoma de um mundo sem sentido.
Eu sempre admirei os colecionadores, mas nunca tive essa disciplina e obstinação, até perceber que não se trata de uma escolha ou de uma vontade, mas antes de algo que se impõe externamente, logo, compulsivo. O colecionador não escolhe aquilo que ele coleciona, antes aquilo que ele coleciona é que o escolhe.
Por isso a compulsão, por isso um sentido que é maior que a vida do colecionador, que engloba a sua existência e assim, não pode ser evitado. A coleção cria o sentido da vida do colecionador, ele é colecionado pelas coisas e não o contrário.
Eu tinha muita vontade de colecionar as coisas, mas não conseguia, porque não havia descoberto a coisa que me colecionava. Agora eu sei, sou uma coleção de desencontros. Reconforta ter um sentido, ter descoberto minha coleção - agora eu sou um inseto numa caixa.