quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Rio.

Ele, deitado na pedra do rio, descansando, pôde entrar em contato com uma verdade que traz consigo a idade do céu e a pungência da vida. E foi tudo pelos respingos d’água.
Percebeu que os respingos não o atingiam de maneira regular, antes acertavam-no em quantidades diferentes e em partes diferentes do corpo. Pensou por um instante em como a água fluindo sempre a mesma e sempre outra em volume estável como pulsação sanguínea por um leito milenar de pedras arredondadas poderia produzir respingos sempre desiguais. Confundiu-se com pensamentos lusco-fuscos. Não conhecia tão bem o rio pelo qual saltava de pedra em pedra usando as mãos e os braços como um símio. Aquele emaranhado de água espumante e pedras de todas as formas e texturas enfim, perdia o sentido.
Não reconhecia o rio por um breve instante. Alguma coisa estava ali, e só agora percebia. Uma presença espreitava.
De olhos fechados o temor se dissipava e ele se acostumou com a respiração acelerada do rio. De olhos fechados ele pôde ouvir sua voz grave e distante.
A voz lhe contou sobre todos os tempos, pois o rio é o passado em seu leito, o futuro em seu devir, e está sempre presente em suas águas. O rio lhe contou do tempo em que a memória não alcança, nos quais a terra era feita de fogo e fúria, e criaturas míticas caminhavam de baixo do sol com suas dimensões épicas sem serem constrangidas ou incomodadas. Contou-lhe do nascimento do seu povo, tão antigo como o vento, aparentado das árvores, com a pele da cor da terra e os olhos da cor do firmamento. Também contou sobre a vinda dos homens com suas armas, seus machados, suas cruzes e suas casas, e lhe revelou que eles trariam a escravidão, ruína e trevas ao seu povo.
Assim soube algo que já havia intuído – o movimento perpétuo do rio, como é infima sua finitude diante dele, e como é eterno e extenso o presente.
Ele se lembrou quando escutou o rio a contar essas coisas, lembrou como quem acaba de aprender uma verdade inédita.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Vovô Zequinha


O diafragma de uma câmera fotográfica abre e fecha em poucos milisegundos para a luz entrar e registrar a imagem no filme. Esse pequeno momento que registra a imagem poderia ser uma vida. Essa rápida abertura durou 84 anos, a vida do meu avô foi a piscadela de uma máquina fotográfica.
Eu queria ter aprendido a jogar no bicho com ele e a apostar nos cavalinhos. Ele era um ótimo apostador, um jogador de primeira. Nos últimos dias me disse: "O jogo não é para se ganhar, o  jogo é para se jogar, ganhar é um acidente de percurso que acontece as vezes. O jogo existe para ser jogado, só isso." E a vida existe para ser vivida, só isso, ele me ensinava. Dele ficou meu gosto pelas cartas, meu bigode, e o vício que o levou pra longe, que o fez encantar aos 84. Eu queria ser meu avô. Eu queria seu sorriso doce e sua calma diante da vida. Eu queria seu senso de humor rabugento e inesperado, que divertia surpreendendo, sempre.

Nos últimos tempos o seu gosto por faroestes italianos e meu gosto por cinema nos aproximou ainda mais. Eram ótimas as tardes de filme com cerveja e queijo de aperitivo.

Eu queria ter tido tempo e dinheiro para levá-lo para um passeio naquele cassino de Viña del Mar. Para pagar um bom barbeiro que lhe desse um atendimento especial e lhe comprar um terno de bom corte em um alfaite. Queria vê-lo elegante mais uma vez, jogando cartas naquele lugar. Não houve tempo, mas tudo bem.

Meu avô faleceu dia 8 de janeiro. Dia do fotógrago, sua profissão a vida inteira. O diafragma aberto há alguns milisegundos se fechou e registrou uma imagem: seu sorriso doce. Para sempre numa foto.