quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O céu dos passarinhos



Desde pequeno sempre fui muito mais próximo de minha avó materna do que da paterna. Lembro ainda que quando vivíamos em uma cidade vizinha a que meu pai trabalhava, todos os dias eu, minha mãe, e meu irmão pegávamos carona com ele até a cidade principal para ele trabalhar e pra minha mãe ficar na casa da minha avó conosco.
Depois de alguns anos nos mudamos pra cidade principal e viemos a morar no mesmo bairro que a minha avó, a apenas quinze minutos de caminhada da casa dela. Passei boa parte de minha infância e juventude lá por conta disso, em tardes agradáveis com cochilos e comidas.
Certo dia, não sei se por idéia da minha mãe ou dos meus tios, cismaram de colocar um passarinho na casa da minha avó. Ela era contra. Desde que perdera o cachorro da família, o “Maneco”, muitos anos antes, ela só se interessava por plantas e não tinha nenhuma vontade de ter outro animal de estimação.  Colocou objeções: “Vai dar trabalho, vai fazer sujeira, não tem onde botar...” – como se uma gaiola fosse um trambolho enorme. 
Acabou por pendurar no banheiro.
O que se seguiu foi algo inacreditável. É previsível que ela tenha se apegado ao passarinho, mas além disso, a presença do canarinho resultou numa inversão na minha relação com minha avó. Ela chegava a todo momento na sala contando animada o que o passarinho fazia, como se fosse uma criança e fazia muitos elogios a ele: “Como canta bonito... e é tão pequenininho, tão delicado...”. E eu me comportava com ela como se fosse um adulto, pois já estava acostumado a ter passarinho em casa, desde bem pequeno, por escolha do meu pai e nenhuma daquelas observações me era novidade. Me senti um pouco orgulhoso, cheio de mim, por ter naturalidade em relação ao passarinho, enquanto que ela não.
Lembro que foi tudo muito rápido, talvez no mesmo dia em que minha avó ganhou o passarinho ou talvez no dia seguinte, enquanto estava na sala de sua casa, ouvi um estrondo e o grito dela; “Ai, meu Deus! Ai! Ai, me ajuda L.!”. Ela chegou na sala em estado histérico cobrindo o rosto com as mãos.  Assustado eu corri até o banheiro para ver que a gaiola tinha despencado e que o passarinho se debatia no lado da grade, que agora estava de encontro com o chão, e que sangrava.
Eu ajeitei a gaiola ainda a tempo de vê-lo no fundo de jornal ofegante, assustado e ferido por poucos instantes antes de morrer. Quando cheguei à sala, minha avó me esperava aflita me olhando, seu olhar buscava uma resposta. Nessa hora senti todo o peso de ser adulto. Não sabia bem como dar a notícia a ela, e acabei falando de qualquer jeito; “Ele não conseguiu não, vó...”. 
Ela desatou a chorar e a falar acelerado, se sentindo culpada pelo acidente, se desculpando e se lamentando e sofrendo. E eu, ainda sem saber ser adulto, tentando sê-lo falei assim pra minha avó: “Calma vó, ele tá bem agora, ele tá num lugar bom, com bastante alpiste e muitos passarinhos pra ele brincar, calma, agora já passou, calma...” 
Assim que eu terminei de falar essas palavras eu percebi que eu não tinha bem certeza se isso era verdade, se existia mesmo um céu de passarinhos, mas enquanto eu refletia sobre isso, em instantes fugazes, eu passei a acreditar. “É... bem que poderia existir um céu dos passarinhos.”
Hoje, olhando pra trás, vejo como se formam as crenças; da necessidade ao discurso, do discurso à dúvida, da falta de sentido ao auto-convencimento. E foi assim, que passei de um discurso de consolo urdido pela necessidade para a duvida se esse discurso era ou não verdadeiro, e por fim à certeza de que a história que eu mesmo tinha inventado, a alguns minutos atrás era, com certeza, verdade.
Tive que cuidar de tudo o mais que envolvia a morte do passarinho, porque minha avó não tinha estrutura para isso. Joguei o passarinho fora, arrumei a gaiola, limpei o chão e mesmo sem saber fazer nada disso direito, digo, sem saber ser adulto, até que eu não me saí mal.
Depois disso me sentei na sala com minha avó que fitava o vazio, ainda em estado de semi-choque.  De vez em quando suspirava, ainda choramingava um pouco, baixinho. E foi ela que começou a falar comigo, ainda vacilante, como se ensaiasse, como se estivesse aprendendo a falar: “Ele... ele está melhor né? Acho... que agora está tudo bem com ele...” Eu respondi que sim com a cabeça, mais uma vez sabendo que era necessário confirmar, era o melhor.
Aos poucos fui distraindo ela, e dali a alguns minutos ela já até riu um pouco de umas palhaçadas que eu fiz. E assim passou o final de mais uma tarde na casa dela.E depois disso, é claro, não houve alma nesse mundo que convencesse minha avó a ter outro passarinho, ou qualquer outro animal.

Nenhum comentário: