domingo, 8 de novembro de 2009

Saga

Meu corpo tombou pesadamente sobre o chão da floresta. Fui arrastado até as margens do grande rio caudaloso e atirado na água. Meu corpo flutuou como uma jangada e foi arrastado correnteza abaixo. Fui me chocando com outros corpos, todos boiando rio abaixo até chegar em um ponto em que fomos recolhidos.
Descansamos à beira do rio, secando ao sol. Amarraram-nos aos montes, em pilhas gigantescas. Vieram muitos caminhões para nos carregar. Eu fui em um destes caminhões com muitos outros corpos empilhados, e estavamos ainda um pouco ensopados. Solavancos na estrada, pude sentir tudo até a parada do caminhão. Havíamos chegado. Apenas um caminhão chegou, os outros não sei para onde foram.
Era uma fazenda, nós descemos do caminhão para trabalhar cortando cana. Tínhamos apenas o de comer e onde dormir e todo nosso trabalho não era suficiente nem para pagar isso. Éramos reféns. Um dia um de nós tentou fugir e foi baleado. Tombou no chão de barro. A plantação estava cercada de homens armados e de chapéu. Mal podíamos vê-los. Raramente eram flagrados.
Mesmo que alguém conseguisse escapar estaria perdido. Fomos levados de caminhão e não sabíamos onde estavávamos nem o caminho de volta. Quem conseguisse passar da barreira invisível de balas ficaria perdido no cerrado até ser encontrado pelos homens de chapéu, e todos tinham medo do que fariam então.
Um dia um teve uma idéia. Diante do desespero descobriu que a rota de fuga era a terra. Ficou de cabeça para baixo, com as mãos plantadas no chão, equilibrando o corpo na vertical. Assim, no meio do canavial, plantou bananeira. Olhamos todos, descrentes da solução. Um barulho e desviamos o olhar por um segundo. Quando olhamos de volta, não havia ninguém lá, só pés de cana. Trabalhamos o dia inteiro, cortamos toda a cana daquela área e ele não voltou a aparecer. Não sei para onde ele foi.
À noite veio a gritaria e as ameaças. Onde ele estaria? Desespero dos capatazes, ódio do encarregado, descrença e violência. Pagamos pelo sumiço do nosso amigo. Menos um, outro não resistiu ao espancamento e virou semente.
Só havia uma saída, a terra. Um a um fomos sumindo. Plantando bananeira e sumindo no meio do canavial. O trabalho se multiplicava por que a quantidade de trabalhadores diminuía. Os capatazes desistiram, aceitaram a situação. Era um mistério, ninguém sabia para onde eles tinham ido. Tive medo e não quis acompanhar, fiquei pro trabalho.
Um dia fomos liberados. Poucos sobraram. Vim parar com meu dinheiro mirrado na maior cidade do mundo. Lá onde existem todos os rostos do planeta. Entrei em uma lanchonete e pedi um pastel com caldo de cana. A cana entrou na máquina de espremer, mas o caldo que saiu do outro lado era vermelho e viscoso.
Na extremidade oposta do balcão um jovem com olhos para o diferente percebeu e foi tomar nota do ocorrido. Do seu lápis não saía grafite negro mas vermelho sangue. Nos entreolhamos – eu baiano e ele paulistano – e entedemos. Encontramos nossos irmãos perdidos na viagem.

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