terça-feira, 11 de maio de 2010

A mulher dentro do trem

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O que mais o incomodava era o fato de que se falasse com ela e construíssem algum laço além da rotineira troca de olhares tornar-se-iam "conhecidos", e dessa forma sempre teria de lhe falar mesmo que não tivesse vontade. Isso em especial era um problema já que para ele a fala dependia de uma disposição para tal, enquanto que o olhar não – este tinha um quê de compulsão. Ele detestava qualquer obrigação mútua que surgisse assim, de maneira velada, e como a maior parte dos relacionamentos humanos continha esses contratos invisíveis porém inevitáveis e pesadíssimos, ele evitava todo e qualquer contato com outras pessoas. Graças a esse temperamento esquivo sua fala cada vez mais atrofiava e seu olhar ganhava em expressividade e extensão sobre o mundo.
Esse não era o principal motivo para se desencorajar, afinal caso não quisesse encontrá-la poderia muito bem pegar o horário seguinte do trem que assim mesmo chegaria a tempo no trabalho e ficaria facilmente livre do estorvo da conversa. Mas não era isso, ele temia como nunca temera ser repelido. Dessa vez o medo era maior principalmente porque ela importava mais do que qualquer outra fantasia até então. Como toda fantasia nova importava mais que a anterior.
Havia se frustrado o suficiente isso é certo, mas na maior parte das vezes perdia de véspera. Não chegava a se arriscar até o fim, e a se expor à repulsa alheia – percebia por uma habilidade inexplicável os sinais contrários do mundo e das pessoas. Percebia em detalhes mínimos as negativas, os limites, as impossibilidades. Podia-se dizer até que tinha uma percepção apuradíssima das impossibilidades.
Enfim, conseguiu justificar a si mesmo seu ato e seu fracasso e se preparou para no dia seguinte abordá-la no trem (após algumas semanas de olhares mútuos) sob a justificativa de que esta mulher, por seu ar solene, seu olhar grave e postura digna era merecedora de portar seu “não” – tinha esperado toda a vida para ouvir um “não” dela. Propriamente dela, unicamente dela e não apenas de alguém como ela.
Mas ela não disse não.

2
Ele sentou-se ao seu lado e após muitas estações de tremores e suor frio, finalmente tomou coragem e lhe dirigiu a palavra com a voz sussurrada, trêmula e falha da insegurança: “Moça, iria te incomodar se a gente conversasse um pouco?”. (A subserviência da proposição se deve tanto a sua timidez e baixa auto-estima quanto à consideração de que ela era algo estranhamente sobrenatural pelo que deixava transparecer seus olhos e sua postura.)
Ela respondeu que não seria incômodo nenhum, também com imensa timidez demonstrada pelo seu olhar esquivo e tremores labiais enquanto falava. Assim como a dele, sua voz era baixa, e foi um milagre que tivessem conseguido se comunicar naquele trem barulhento. Na verdade várias vezes ele não conseguiu escutá-la e havia apenas assentido com a cabeça por vergonha de fazê-la se repetir, e também pela intuição de que isso de nada adiantaria uma vez que se quisesse entender tudo que ela dizia teria que pedir muitas vezes que ela se repetisse e isso seria ridículo e descabido. Ele teve muita vergonha por enganá-la assim, fingindo atenção quando não escutava nada do que dizia por conta do barulho que fazia o trem. É claro que só ele sustentava a ilusão de que ela não havia percebido que ele não escutava nada do que ela dizia e apenas balançava a cabeça em concordância em um gesto de simpatia.
De imediato a timidez dela o atraiu. Primeiro pelo contraste causado pelo fato de a portadora da timidez ser uma mulher tão bonita com uma aparência que sugeria sofisticação e elegância. Para ele a timidez era propriedade de pessoas deformadas, esquisitas, mal acabadas, ou mal ajambradas. Em segundo lugar a timidez o atraía porque trazia às pessoas uma aura de desamparo e isso lhe despertava enorme comoção, e ele nunca soubera muito bem separar qualquer tipo de afeto da compaixão. Os tímidos eram irresistíveis aos seus olhos especialmente porque muitos aspectos da sua personalidade eram secretos, e por isso, raríssimos, sendo possível acessar tais segredos apenas com muito custo e após muito tempo. A sua intimidade indevassável podia revelar continentes inteiros, vastos e ricos de trejeitos, olhares e expressões que não se mostravam ao vulgo e ficavam por assim dizer guardados, para aqueles poucos que conseguissem descobrir esse tesouro escondido sob camadas e mais camadas de desconfiança em relação às outras pessoas e, principalmente, desconfiança em relação a si próprio.
Trocaram poucas palavras, os silêncios foram longos, mas o agradou que ela também estivesse nervosa, sentiu-se mais influente.
3
Ela o avisara na conversa do dia anterior o horário do trem que pegaria no dia seguinte e seria mais tarde que o habitual e ele lamentou muito por ter despertado atrasado nessa manhã. Seu atraso o obrigaria a pegar o mesmo trem que ela, e essa possibilidade o desanimou profundamente. Sua irritação era ainda maior do que aquela que sentia todas as vezes que se atrasava no emprego. O atraso no trabalho lhe pareceu um problema menor diante do fato de que ela poderia pensar que ele teria pego esse horário do trem propositadamente para encontrá-la. Essa idéia o causava repulsa não por estar exposto aos jogos de poder ordinários que existem entre homens e mulheres – ele ignorava isso tudo – mas principalmente porque esse gesto poderia revelar um comportamento obsessivo de sua parte quando na verdade tinha sido provocado pelo acaso. Ele não queria demonstrar obsessão justamente porque era essa a idéia que fazia sobre o amor; um esforço obsessivo em reforçar o afeto sobre uma mesma pessoa; e esse ainda não era o caso, por mais que aquela mulher o atraísse.
Tratou logo de encontrar um lugar discreto no trem, se acomodar e fingir que dormia mas seu olhar compulsivo buscou em volta para ver se ela estava lá, e se decepcionou por não encontrá-la. Ela embarcou no trem algumas estações a frente e ele ao avistá-la recuou e se escondeu como uma criança. Dormiu boa parte do trajeto mas não resistiu em dar umas olhadelas em sua direção e foi numa dessas que se sentiu flagrado recuando rápido a cabeça à posição original longe do olhar dela com um gesto um pouco ridículo.
Depois que se levantou para saltar em sua estação ainda olhou mais uma vez e desceu do trem fingindo distração. Caminhou ao longo da estação em direção à saída com a cabeça baixa acompanhando a linha amarela, e talvez numa ilusão, percebeu que ela virara a cabeça para olhá-lo quando a janela do trem passou ao seu lado.
No dia seguinte a encontrou no trem, e mais uma vez hesitou em aproximar-se, deixando-se inclusive estar de pé alguns metros a frente no vagão de costas para ela, esperando que um lugar ao seu lado vagasse, para aí sim chegar perto, cumprimentá-la e se sentar. Apenas muito tempo depois pôde calcular o quanto essa atitude parecia estranha e decidiu com muita firmeza que da próxima vez entraria no trem antes dela e se sentaria ao seu alcance, caso ela sentasse ao seu lado conversariam, caso contrário não a procuraria mais deixando que sua estranheza parecesse aleatória e não apenas uma puerilidade.
Mais uma vez a conversa foi esparsa, e ele se incomodou com isso por mais que seu temperamento a essa altura da vida já o fizesse entender, estimar e apreciar os silêncios significativos que existem em uma conversa. Apesar de ter aprendido a se fazer presente em silêncio não conseguia fazer isso com ela, e quando dizia alguma coisa suas falas eram enfadonhas, sem sentido e desconexas, e ele culpava o trem por isso. A barulheira infernal da máquina e a dificuldade em escutar as respostas dela o faziam perder o tempo da conversa, interrompê-la enquanto ela falava, e a dizer coisas torpes e desnecessárias. Logo resolveu calar-se para ver se ela se colocava. Mas ela não disse nada e seguiram por muitas estações sob o incômodo silêncio barulhento do trem.
Ele chegou a duvidar se deveria falar com ela de novo mas na hora de se despedirem ela o desejou um bom dia de trabalho ao que ele respondeu desculpando-se mais uma vez pelo incômodo causado por sua companhia – demonstrando como da primeira vez em que se falaram fraqueza e subserviência, um efeito até compreensível após o longo tempo que passaram em silêncio lado a lado – e as últimas palavras dela antes que ele descesse finalmente do trem foram ditas fitando-o dentro dos olhos (coisa que ela raramente fazia) com expressa ternura no semblante e no olhar: “Que isso L., incômodo nenhum”.
Isso reascendeu seu ânimo, e fez de novo brotar-lhe a idéia de convidá-la a um encontro em outro lugar que não fosse aquele trem sujo, feio, desconfortável, decadente e barulhento – mas seguiu com sua convicção de que só o faria caso ela o buscasse e se sentasse ao seu lado no trem. De primeiro essa idéia lhe pareceu precipitada e ainda mais descabida pelo fato de que ele não conseguira nem ao menos estabelecer uma conversa normal com ela mas a lembrança da ternura com que ela refutou sua auto-depreciação mudou o modo como via as coisas. Apesar de só terem conversado duas vezes e de ter sido desastroso talvez se ela o buscasse e se isso lhe emprestasse segurança e uma voz fluente com assuntos interessantes, talvez, somente assim, se animasse a convidá-la para fora daquele troço de metal.
Na volta do trabalho, depois de saltar do trem e enquanto esperava a condução para casa no ponto de ônibus, resolveu contar quantas pessoas passavam tirando meleca num intervalo de dez minutos. Três foi o total computado, e enquanto contava pensou se ela percebia toda sua estranheza como o indício da inexperiência juvenil de um tolo apaixonado. Essa idéia o revoltou profundamente porque se enxergava como um homem sério e pleno de sentido, e aquele era apenas um lapso causado por uma série de incidentes e situações inesperadas e sobre as quais não era possível ter preparo. De repente se percebeu justificando-se a si mesmo, e isso só faria sentido para um homem pleno de sentido se ele fosse uma personagem e estivesse vivendo uma fantasia literária.

4
Encontrou-a na semana seguinte, e ela é que veio até ele, o que o emprestou um pouco de coragem. Ela já chegou se desculpando pela última vez em que tinham se visto e isso o colocou em uma posição favorável às suas intenções de convidá-la a um encontro fora do trem. Não compreendendo ele retrucou perguntando o motivo das desculpas e ela respondeu dizendo que se ele se desculpara por talvez tê-la incomodado então ela também tinha de fazê-lo. Foi um pedido de desculpas formal e cortês, genérico, mas no estado em que estava ele nunca conseguiria enxergar assim.
Foram conversando de novo de maneira esparsa, mas dessa vez ele se sentia mais confiante e a conversa fluiu melhor. Ele fez gracejos, sorriu e a fez sorrir. Estrategicamente deixou o convite para o final da viagem para o caso de ouvir uma negativa não ter de suportar por muito tempo a situação vexante.
Quando estavam chegando na estação em que ele saltaria, perguntou a ela se poderiam se encontrar em um lugar menos barulhento e menos desagradável que aquele trem velho e sujo que os unia. Antes que ela pudesse responder um forte estrondo acompanhado de um tranco arremessaram o trem para fora dos trilhos. Tombado de lado e descarrilado o trem ainda deslizou por alguns metros até parar completamente.
Ele escalou o vagão até a janela que agora ficava em cima e saiu para ver o que tinha acontecido. No horizonte fazendo a curva um dragão escurecia o sol com sua enorme asa negra. Ao terminar sua manobra a besta voltava em direção ao vagão tombado com sua bocarra aberta preparando-se para lançar um jorro de chamas sobre as pessoas.
Sem hesitar ele saltou do alto do vagão, colheu no chão um pedaço de ferro em forma de lança que havia soltado do trem quando ele descarrilou e cravou na barriga do dragão aproveitando o rasante mortal da fera. Do buraco do abdome do dragão saiu fogo em vez de sangue e uma labareda devorou todo seu corpo fazendo-o se transformar em cinza púrpura que choveu sobre os espectadores atônitos. Quando terminou ele olhou em volta avaliando o efeito da sua ação. De nada adiantou seu ato heróico porque a mulher havia sido esmagada quando o trem tombou e seu corpo jazia debaixo do pesado vagão como ele pôde constatar mais tarde.

5
Ou isso aconteceu ou ela simplesmente respondeu que era casada e que portanto não poderia se encontrar com ele em outro lugar e tudo se resumiria àquelas conversas no trem. Essa resposta geraria nele a reação imediata de agradecer mentalmente por poder saltar logo na próxima estação e por ter a opção de pegar o horário seguinte do trem nos dias vindouros e nunca mais encontrá-la para o resto de sua vida. Ou ainda ela poderia ter dado uma resposta evasiva fazendo a situação se estender indefinidamente entre tímidos avanços e consideráveis retrocessos.

A escolha de qualquer um dos finais não faz a menor diferença.

Um comentário:

Anita disse...

[off topic]

Oi, tudo bem?

Cuidamos das mídias online do filme “Olhos Azuis” do diretor José Joffily, que estréia no circuito nacional de cinema em 28 de maio. Gostaríamos de falar com você!

Assunto: Convite especial para pré-estreia do filme exclusiva para blogueiros.

Achamos seu blog interessante e queremos que participe! A será dia 17 de maio, no Rio de Janeiro.

Entre em contato se tiver interesse em participar: coevosfilmes@gmail.com
Para mais informações sobre o filme, visite o nosso site: http://www.olhosazuisfilme.com.br/olhosazuis/

Sinopse:

Marshall (David Rasche) é o chefe do Departamento de Imigração do aeroporto JFK, em Nova York. Comemorando seu último dia de trabalho, Marshall resolve se divertir complicando a entrada no país de vários latino-americanos. Entre eles está Nonato (Irandhir Santos), um brasileiro radicado nos EUA, dois poetas argentinos, uma bailarina cubana e um grupo de lutadores hondurenhos. Dois anos depois, Marshall vem ao Brasil procurar uma menina de nome Luiza. Quando ele conhece Bia (Cristina Lago), uma jornada em busca de redenção se inicia. Olhos Azuis foi o grande vencedor do II Festival Paulínia de Cinema com seis prêmios, incluindo o de Melhor Filme.

No Twitter: @olhosazuisfilm

Aguardo retorno!

Quem me indicou seu blog foi uma amiga.

Abs.