segunda-feira, 31 de maio de 2010

O último pecado da humanidade

No mundo de 2133 d.C. todas as medidas paliativas tomadas no último século para contornar a questão ambiental foram consideradas com seu prazo de eficácia expirado. Se tornou nececessário uma solução final.
Nesta sociedade futurista a elite intelectual e política conseguiu com medidas saneadoras resolver boa parte dos problemas das grandes cidades. Com a reciclagem de todo material produzido o disperdício tangenciava o limite mínimo e assim, a Terra se recuperava a passos largos do grande dano causado pelas guerras e a equivocada reconstrução que se seguiu na segunda metade do século XX e nas primeiras décadas do XXI. Mas a recuperação não parecia suficiente.
A principal questão política pendente era a do consumo da carne, e isso incluía eliminar de vez a produção baseada em pequenas comunidades camponesas –  que por um lado não conseguiam satisfazer as necessidades do mercado por produtos de origem vegetal devido à modéstia do volume de sua produção, e por outro conservavam o bárbaro e vergonhoso ritual de sacrifício de seres vivos e consumo de carne.
Este novo mundo levou às últimas consequências determinados princípios da sociedade moderna que haviam sido deixados de lado ou abandonados por pura preguiça e falta de determinação das gerações anteriores, e principalmente, pelos freios morais que foram pouco a pouco sendo eliminados graças à ajuda e apoio da classe artística antenada aos novos valores da sociedade do futuro. Inesperadamente, foram as intervenções artísticas nas ruas que conseguiram com avançados métodos publicitários reformar os espíritos para a nova ordem.
O princípio de transparência na vida, por exemplo, havia sido realizado com a cobertura completa das ações de todos os indivíduos com câmeras, scanners e sensores, que captavam os mínimos gestos e transmitiam em tempo real para todo planeta, para quem quisesse assistir o que cada um fazia em cada momento. Isso já havia sido previsto por crônicas do século XX, porém, ninguém poderia prever que os próprios cidadãos observariam a normalidade de seus congêneros e corrigiriam os desvios agindo da maneira adequada para atenuar seus efeitos e detectar sua origem reeducando o indivíduo em questão.
Não havia nenhum instituto ou departamento encarregado da vigilância e normatização do comportamento dos indivíduos, a própria sociedade se encarregava disso colocando em ação amigos, familiares, colegas de trabalho, e até pessoas desconhecidas poderiam de maneira bem sutil sugerir a alteração adequada para trazer de volta o concidadão à norma. A participação na restauração de um concidadão é considerada uma honra e motivo de alegria.
Por outro lado a privacidade e a individualidade eram resguardadas e estimuladas ao extremo, ao ponto de nos transportes públicos serem implantadas cabines para separar os assentos, isolando-os herméticamente, de modo que os passageiros não se encostassem, não ouvissem a mesma música, não respirassem o mesmo ar, e era dada até a opção de alterar o painel que mostrava a paisagem. Cada usuário poderia carregar as configurações de sua preferência a partir de seu cartão de identidade eletrônico. Um dispositivo semelhante também havia sido intalado nos elevadores, com o incoveniente de aumentar o espaço ocupado por cada passageiro obrigando os engenheiros a aumentarem o tamanho interno dos elevadores para não diminuir a lotação.
Nas grandes cidades a paz e consenso reinavam e o apoio era total em relação às intenções do governo.  A aplicação dos ideais de pureza corporal e espiritual, a higienização dos espaços públicos e privados e  formulação de uma ética verdadeiramente humanista praticada com regozijo por todos os cidadãos tiveram como efeito o fim das desigualdades sociais e da exploração exarcebada que em outros tempos degradava a condição humana e impossibilitaca a vida digna de todos.
Mas existia ainda o problema das comunidades camponesas e seu modo de vida que se mantinha o mesmo desde tempos imemoriais. Desde antes das guerras e da reconstrução, desde muito antes do advento da imundice industrial, desde antes da invenção do Estado e da sociedade civilizada. Teimosamente estes indivíduos se mantinham imunes ao progresso, seguiam retrógrados e agarrados às suas tradições, com seu modo de vida sujo, ultrapassado e promíscuo se reproduzindo em progressão exponencial; irracionalmente colocando em risco a existência de toda a espécie humana e o equilíbrio ambiental da Terra, conquistado a tão duras penas. Pareciam, por uma inteligência diabólica e coletiva, querer superar a baixa expectativa de vida com a quantidade de filhos.
Estima-se que com todos os avanços da engenharia genética e da medicina cirúrgica a média de estimativa de vida de um habitante das cidades seja até quatro vezes maior que a de um habitante das aldeias. Mesmo assim, vivendo menos, eles mantinham persistentemente seu modo de vida, como se essa opção fosse anterior à sua tomada de consciência do mundo, anterior ao seu nascimento e fosse mais dura que aço; inquebrável. Optavam por uma existência suja e coletiva e não por individualmente viverem mais, era inexplicável porque não era uma opção e sim uma compulsão. Eles viviam compulsivamente, sem que a vida fosse um gesto da vontade, uma escolha.
Muitas soluções foram pensadas. A migração para as cidades era largamente estimulada e toda a estrutura necessária para se assentar à nova situação e se adaptar a nova vida era garantida pelo governo. Muitos optavam por vir às cidades, e só assim era possível entrar no futuro, por opção e mote próprio, uma vez que a adesão compulsória é um método bárbaro e típico da vida que levavam antes da grande reforma e não do novo mundo que se abre na alvorada do futuro. Era motivo de orgulho que não houvesse registro de nenhum caso de pessoa que se arrependesse e escolhesse voltar às aldeias depois de ter migrado para as cidades. Para isso contribuiam os sofisticados e sutis mecanismos de conformação à nova ordem, como a imperceptível reeducação promovida pelos próprios concidadãos.
Também era oferecido a qualquer morador das aldeias, cirurgias para esterelização de homens, mulheres e até crianças que se voluntariassem, porém, como tudo dependia da vontade e escolha dos aldeões toda solução tinha o limite de a maioria da população continuar compulsivamente a viver como seus pais e avós.
No final das contas considerou-se que de uma maneira ou de outra a existência dessas aldeias deveria cessar assim que possível. Apesar de não ser muito humanista parecia que a única saída que restava era exterminar essa população e como a avançada tecnologia das cidades permitia, isso seria feito de uma só vez e sem sofrimento. A conversão forçada dos habitantes das aldeias parecia aos moradores das cidades algo bárbaro e contraditório com seus princípios de modo que o extermínio restava como opção menos ofensiva.
Muitas décadas antes um morador das cidades já havia previsto essa solução e exposto sua opinião, de que ela era desumana. Por outras contestações esse habitante havia se tornado um incômodo e era considerado por uns um perverso e por outros um moralista retrógrado. Ele havia sido o último morador das cidades a migrar por livre e espontânea vontade para as aldeias e antes disso deixou escrito um grande tratado em que denunciava com conceitos antiquíssimos – de mais de duzentos anos de existência – que a sociedade presente era uma utopia burguesa e que ela tentava a todo custo ignorar a humanidade, reificando o mundo das mercadorias e substituindo o trabalho humano por máquinas para não se identificar com os produtos gerados. Essa versão deturpada da sociedade pelo olhar desse homem louco foi refutada com facilidade pelas mentes mais pródigas da sociedade ao demonstrarem que a arte e o pensamento ainda eram produtos gerados pelos humanos, e apenas por eles, e que apenas esses produtos realmente refletiam a natureza da alma humana e não o vil trabalho manual que existia nas antigas fábricas.
Finalmente uma bomba foi produzida de modo que quando fosse acionada transformaria as toxinas existentes em organismos consumidores de carne vermelha em um veneno que seria responsável pela morte das populações das aldeias. Os argumentos eram justos; no passado os ancestrais primitivos da sociedade já haviam matado por Deus e pela Democracia e nos tempos limpos esses eram considerados princípios guiados por interesses parciais ou impregnados de misticismo. Dessa vez não, a mortandade era pelo bem do futuro da humanidade e da vida na Terra. Quanto mais digno e justo o motivo do ataque maior a fúria dos agressores. Mais ainda, na população em geral, a mortandade era justificada pela imoralidade do consumo de carne e do sacrifício contínuo e perpétuo de seres vivos. Com um golpe só seriam carrascos dessa aberração.
A decisão foi posta em prática no dia __ de _____ de 2133 d.C. com o pequeno ajuste de se utilizar potentes bombas incendiárias em vez daquela projetada inicialmente. O ajuste se justifica pelo efeito estético que causaria e para melhor se adequar à mitologia das aldeias que defendia que o mundo acabaria em fogo. A mudança também  é compreensível uma vez que os moradores das cidades eram portadores de um elevadíssimo senso estético e queriam fazer do evento que seria transmitido em tempo real para todo mundo um espetáculo de luzes e cores. Pela potência das bombas a morte seria igualmente instantânea e a destruição colateral é justificável diante da beleza do acontecimento e do simbolismo do fogaréu ser o parteiro desse novo tempo que se iniciaria. A equipe artística encarregada de registrar e televisionar a destruição das aldeias resolveu por uma homenagem à obsoleta arte do cinema do século XX; usando como trilha musical para o espetáculo a música Surfin´ Bird gravada em 1964 por um grupo chamado The Trashmen e utilizada em filmes de guerra nessa época.
Depois desse último sacrifício um futuro brilhante aguardava os espíritos elevados das cidades e seu ideal de pureza, ordem e perfeição poderia reinar sem máculas. Esse foi o último pecado da humanidade.

( The Trashmen - Surfin Bird : http://www.youtube.com/watch?v=ZThquH5t0ow )

Um comentário:

β λ Я α δ disse...

Não sei se meu comentário faz jus ao escrito e, tampouco, se logra alçar o significado real. Ele me levou a pensar em várias situações atuais, tais como: a paranóia por segurança e vigilância intermitente; a arte como produto mercadológico, servindo à classes que podem consumi-la; a necessidade extremada de punição a que as pessoas vêm se entregando a tudo que pareça subversivo e contrário à 'ordem'; e principalmente, o autor que identifiquei claramente como o 'louco' que deixa a cidade e vai para o campo. Muito bem redigido e reflexivo.