sábado, 19 de maio de 2012

Deuses canibais e forças predatórias

Eu estava pensando... chove lá fora e eu estive pensando. Minha casa desabou comigo dentro e me matou. Mas minha casa não é um barraco precário construído com papelão em uma encosta íngrime e lamacenta. Minha casa tem mais de cem anos e foi construída pra durar mais de mil, eternamente. Foi construída em uma extensa campina, pelo pai do meu avô, ou pelo pai dele. À frente tem uma avenida ladeada por altas palmeiras e atrás um pasto a perder de vista.
A água da chuva foi minando a casa, se infiltrando nos tijolos e na massa até que todo sólido ficou poroso. O único sinal disso eram uns focos de mofo aqui e ali. Normal para uma casa velha. Mas no todo ela não era tão velha sabe, ela tinha apenas uns cento e poucos anos apesar de ter sido construída para durar mais de mil.
Eu ainda ouço na minha cabeça os tambores dos pretos, de quando eles cantavam e gritavam. Não sei se me contaram isso quando criança ou se a lembrança me foi transmitida geneticamente pelos meus ancestrais, expostos tão continuamente ao som desses rituais. Eles cantaram a toa, todos trabalharam até morrer. Eu não, mesmo morto continuo pensando, não vou morrer nunca porque meus pensamentos foram feitos para durar mais de mil anos. 
Por que eles batiam aqueles tambores se isso não os salvou da morte? Quais forças eles tentavam mobilizar a seu favor? Não faz diferença, não adiantou. Nada adianta. As raízes das árvores continuam movendo-se lentamente, quebrando concreto, a chuva continua minando construções, o vento transformando pedra em areia e o mar transportanto areia por aí.
Só meu pensamento continua, por mais de mil anos, eternamente, e dentro dele os tambores dos pretos.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A última prova de Renato.



Pra começar ninguém conhecia seguramente sua origem. Renato foi encontrado na rua, com 4 anos de idade, sem saber o nome dos pais, e sem saber explicar como e onde tinha vivido até então. Sabia apenas seu próprio nome, falava pouco e em geral era tímido, mas com algum tempo no orfanato foi ganhando confiança em si mesmo e cada vez se abrindo mais. Continuava, no entanto, sem se lembrar do que se passara até ser encontrado e levado para o orfanato.
Renato não tinha um relacionamento muito bom com as outras crianças, porque estas, em sua maioria, eram levadas ao orfanato por obrigação e sempre que podiam fugiam de volta para as ruas. Por seu temperamento manso, ingenuidade e bondade Renato sofria um pouco nas mãos das outras crianças, mas em pouco tempo estas fugiam e eram substituídas por outros menores abandonados. Renato, diferente dos outros, gostava do orfanato e encontrou nos funcionários que lá trabalhavam uma família.
Em especial com um faxineiro chamado Vicente, senhor já com seus 60 anos, Renato desenvolveu uma forte amizade; os dois tinham uma relação quase de pai e filho. Foi Vicente que levou Renato pela primeira vez para o centro de treinamento para crianças carentes, e também cuidou de sua educação.  No centro esportivo Renato começou a treinar na pista de atletismo, os 100 e 200 metros rasos.  Com pouco tempo de treinamento Renato demonstrou uma velocidade surpreendente, tornando-se não apenas o melhor velocista do centro de treinamento como também vindo a ser vitorioso em todos os campeonatos locais e regionais que competiu.
Certo dia, quando ainda treinava no precário centro para crianças carentes algo inesperado se sucedeu. Como a chuva tinha deixado a pista de corrida inutilizável por causa da lama e das poças, Vicente, que era o treinador do centro esportivo, colocou as crianças velocistas para arremessarem pesos com os outros atletas mirins. Apesar dessa categoria de atletismo não agradar a Renato como as provas de corrida ele se saiu surpreendentemente bem e com um dia de treinamento já quase igualava os jovens que só treinavam nessa categoria.
A partir desse dia, o velho Vicente entendeu que estava diante de algo diferente. Resolveu a partir de então testar Renato em todas as categorias do atletismo que fosse possível. Renato não frustrou as suas expectativas, se tornando o fundista com os melhores tempos, seja em 800 metros ou na corrida de 1500 metros. Renato se aplicou no salto com vara, salto em distância, salto triplo e em todas as categorias que disputava, fazia os melhores tempos e as melhores marcas.
Quando completou 17 anos Renato foi para a primeira olimpíada representando seu país e trouxe de volta mais de 20 medalhas de ouro, quebrou alguns recordes estabelecendo novas marcas e se tornou sensação em todo mundo. Renato era um fenômeno inexplicável, só não ganhava provas coletivas porque seus companheiros o atrapalhavam.
Mas foi nesse momento, no auge da sua carreira, que em uma entrevista Renato conseguiu estabelecer uma explicação para seu sucesso nos esportes, e sua resposta foi o início de um processo de rápida decadência. Perguntado sobre como ele explicava sua surpreendente performance em categorias esportivas tão diversas, assim ele respondeu: “Eu não sou um atleta, apenas um homem pode ser um atleta, eu sou outra coisa, eu sou um herói  à moda dos gregos, o resto da humanidade não são meus congêneres, eu sou irmão de Hércules e de Aquiles. De alguma forma, eu não sei bem como, mesmo não sendo um deus, eu trago algo de divino em mim, e isso é terrivelmente solitário e assustador.”
Essa declaração de Renato continha uma verdade incômoda e inevitável, e fez com que o mundo despertasse para essa dimensão perigosa e ameaçadora de sua existência. Não era sua intenção menosprezar a humanidade, antes disso Renato lamentava não poder fazer parte dela, mas de alguma forma a expressão manifesta pelas suas palavras de sua natureza sobre-humana causou uma impressão profunda e definitiva no resto das pessoas comuns. A resposta imediata da população em geral diante dessa declaração foi a aversão completa e absoluta em relação a Renato. Impuseram-lhe testes biológicos e psicológicos, mas todos atestavam pela humanidade de Renato. Não era um alienígena e não era um mutante, apesar de seus feitos sua estrutura física não diferia em nada da de qualquer outro ser humano. Mas de qualquer forma, com a auto-consciência manifesta de sua superioridade ele nunca mais seria considerado humano pelas outras pessoas.
Antes das olimpíadas seguintes diversos países entraram com uma representação contra a participação de Renato nos jogos. Mesmo a população do seu país estava contra a sua participação, e o governo na figura do comitê olímpico nacional o aconselhou a não se inscrever nas provas preliminares para as olimpíadas seguintes. Renato não queria abrir mão daquele veículo que o havia incluído no mundo, mesmo que agora ele o afastasse das demais pessoas. Conseguiu por fim, negociar sua participação, afinal, não existia nenhum argumento médico ou científico que o impedisse.
Renato conseguiu se classificar em primeiro lugar em todas as categorias que se inscreveu e nos jogos ficou claro que a oposição de toda a humanidade à sua participação seria implacável. Ganhando todas as medalhas de ouro das competições que participava de baixo de vaias e xingamentos, Renato seguiu competindo, até chegar a prova de salto triplo.
Nessa prova, chegada à final, Renato correu para vencer seus oponentes, deu o primeiro passo ouvindo os xingamentos e a gritaria que tentava desconcertá-lo, quando deu o segundo passo pôde ouvir com distinção cada voz do estádio que o vaiava e cada insulto lançado contra ele, sentiu o ódio coletivo cair sobre seus ombros, e finalmente depois do terceiro veio o salto. Esse salto durou uma eternidade para Renato, em câmera lenta ele decidia se iria empatar com a melhor marca de seus oponentes e assim tentar propor uma trégua com a humanidade, ou se iria se humilhar e deixar outro ganhar caindo antes.
Mas resolveu que não, sabia que isso não seria suficiente, que a fraude seria óbvia e ofensiva e o orgulho da humanidade diante desse gesto compassivo ficaria ferido gerando uma revolta ainda maior contra a sua pessoa. Ainda, tinha sido graças à sua retidão e competência no atletismo que ele havia ganhado a simpatia de todos, que ele tinha conquistado um lugar no mundo, e agora, por causa dela se via deslocado de novo, sem lugar. Renato seria coerente consigo mesmo, e deixaria a humanidade mudar de opinião e ser arbitrária ao seu próprio gosto. Renato não sentiu vontade de cair antes das marcas do seus oponentes, nem em cima das marcas de seus oponentes, nem depois dessas marcas... Renato não queria mais estar ali, então ele não pousou, seu salto se transformou em um vôo inesperado; observado por milhares de expectadores atônitos, e milhões que assistiam ao evento pela televisão.
Renato voou para longe dali e nunca mais ninguém viu ou ouvir falar dele.


http://www.youtube.com/watch?v=lCEbGaaZpDA

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O céu dos passarinhos



Desde pequeno sempre fui muito mais próximo de minha avó materna do que da paterna. Lembro ainda que quando vivíamos em uma cidade vizinha a que meu pai trabalhava, todos os dias eu, minha mãe, e meu irmão pegávamos carona com ele até a cidade principal para ele trabalhar e pra minha mãe ficar na casa da minha avó conosco.
Depois de alguns anos nos mudamos pra cidade principal e viemos a morar no mesmo bairro que a minha avó, a apenas quinze minutos de caminhada da casa dela. Passei boa parte de minha infância e juventude lá por conta disso, em tardes agradáveis com cochilos e comidas.
Certo dia, não sei se por idéia da minha mãe ou dos meus tios, cismaram de colocar um passarinho na casa da minha avó. Ela era contra. Desde que perdera o cachorro da família, o “Maneco”, muitos anos antes, ela só se interessava por plantas e não tinha nenhuma vontade de ter outro animal de estimação.  Colocou objeções: “Vai dar trabalho, vai fazer sujeira, não tem onde botar...” – como se uma gaiola fosse um trambolho enorme. 
Acabou por pendurar no banheiro.
O que se seguiu foi algo inacreditável. É previsível que ela tenha se apegado ao passarinho, mas além disso, a presença do canarinho resultou numa inversão na minha relação com minha avó. Ela chegava a todo momento na sala contando animada o que o passarinho fazia, como se fosse uma criança e fazia muitos elogios a ele: “Como canta bonito... e é tão pequenininho, tão delicado...”. E eu me comportava com ela como se fosse um adulto, pois já estava acostumado a ter passarinho em casa, desde bem pequeno, por escolha do meu pai e nenhuma daquelas observações me era novidade. Me senti um pouco orgulhoso, cheio de mim, por ter naturalidade em relação ao passarinho, enquanto que ela não.
Lembro que foi tudo muito rápido, talvez no mesmo dia em que minha avó ganhou o passarinho ou talvez no dia seguinte, enquanto estava na sala de sua casa, ouvi um estrondo e o grito dela; “Ai, meu Deus! Ai! Ai, me ajuda L.!”. Ela chegou na sala em estado histérico cobrindo o rosto com as mãos.  Assustado eu corri até o banheiro para ver que a gaiola tinha despencado e que o passarinho se debatia no lado da grade, que agora estava de encontro com o chão, e que sangrava.
Eu ajeitei a gaiola ainda a tempo de vê-lo no fundo de jornal ofegante, assustado e ferido por poucos instantes antes de morrer. Quando cheguei à sala, minha avó me esperava aflita me olhando, seu olhar buscava uma resposta. Nessa hora senti todo o peso de ser adulto. Não sabia bem como dar a notícia a ela, e acabei falando de qualquer jeito; “Ele não conseguiu não, vó...”. 
Ela desatou a chorar e a falar acelerado, se sentindo culpada pelo acidente, se desculpando e se lamentando e sofrendo. E eu, ainda sem saber ser adulto, tentando sê-lo falei assim pra minha avó: “Calma vó, ele tá bem agora, ele tá num lugar bom, com bastante alpiste e muitos passarinhos pra ele brincar, calma, agora já passou, calma...” 
Assim que eu terminei de falar essas palavras eu percebi que eu não tinha bem certeza se isso era verdade, se existia mesmo um céu de passarinhos, mas enquanto eu refletia sobre isso, em instantes fugazes, eu passei a acreditar. “É... bem que poderia existir um céu dos passarinhos.”
Hoje, olhando pra trás, vejo como se formam as crenças; da necessidade ao discurso, do discurso à dúvida, da falta de sentido ao auto-convencimento. E foi assim, que passei de um discurso de consolo urdido pela necessidade para a duvida se esse discurso era ou não verdadeiro, e por fim à certeza de que a história que eu mesmo tinha inventado, a alguns minutos atrás era, com certeza, verdade.
Tive que cuidar de tudo o mais que envolvia a morte do passarinho, porque minha avó não tinha estrutura para isso. Joguei o passarinho fora, arrumei a gaiola, limpei o chão e mesmo sem saber fazer nada disso direito, digo, sem saber ser adulto, até que eu não me saí mal.
Depois disso me sentei na sala com minha avó que fitava o vazio, ainda em estado de semi-choque.  De vez em quando suspirava, ainda choramingava um pouco, baixinho. E foi ela que começou a falar comigo, ainda vacilante, como se ensaiasse, como se estivesse aprendendo a falar: “Ele... ele está melhor né? Acho... que agora está tudo bem com ele...” Eu respondi que sim com a cabeça, mais uma vez sabendo que era necessário confirmar, era o melhor.
Aos poucos fui distraindo ela, e dali a alguns minutos ela já até riu um pouco de umas palhaçadas que eu fiz. E assim passou o final de mais uma tarde na casa dela.E depois disso, é claro, não houve alma nesse mundo que convencesse minha avó a ter outro passarinho, ou qualquer outro animal.

sábado, 23 de outubro de 2010

Jogando fora todos os sonhos mais uma vez sou só corpo, mais uma vez sem memória, mais uma vez sem sentido. Tenho sentido um propósito maior, maior que a própria vida. Mais uma vez a força, mais uma vez o medo de não estar a altura do destino que escolhi. Ou escolheram – não é possível precisar o quanto há de voluntário e o quanto há de contingente nessa condição. Agora nada mais é minha vontade, mas tudo é vontade de vida que não me pertence. Nunca pertenceu, nunca fui o timoneiro. Mas já admirei o horizonte, e a luz que emanava era insuportável. Desviei o olhar, não tenho mais olhos, agora sou apenas corpo.
Sinto o calor, sinto o frescor da brisa, sinto os meus sonhos que flutuam em torno de mim roçar de leve minha pele e arrepiar. Sinto uma aura que me circunda, e é tão volátil que desaparece com um espirro. Sinto que não há interior que baste pro que me espera, sinto que tenho que ser só sentido. Os sonhos devem estar a flor da pele, não cabem dentro de mim. Os sonhos não são meus; são sussurros do vento, são borbulhar de águas, são olhar de águia.
Serena revolta que me atinge, sombria vibração que balança meu corpo; é a respiração da terra. De novo sou um sopro grave – expiro. 

De novo sou novo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A incrível história do intrépido caçador de formigas e seu insólito fim

Tudo começou com uma brincadeira perversa quando ele era criança; usando lentes de aumento esturricava formigas desavisadas que cruzavam todos os dias o longo caminho entre o canteiro ocidental e seu formigueiro na borda sul. Entre seus amigos ele nem era considerado o mais cruel, já que as outras crianças se divertiam torturando gatos e outros animais maiores; no entanto, entre as formigas do formigueiro sul ele passou a ser conhecido como O Fogo do Céu, que ataca sem aviso ou clemência.

Já adolescente ele se deparou com o maior desafio de sua vida até então; enfrentou uma enorme tropa de saúvas vermelhas descalço em um terreno baldio e, apesar de todo picado, conseguiu exterminá-las todas. Sua fama se espalhava por vastas terras e diferentes espécies de formigas comentavam do terror - agora sem mais nomeá-lo -, cada uma de seu modo, cada uma em sua língua. Também entre as pessoas sua fama se alastrava: uma tia sua, por exemplo, ao saber de sua aptidão e gosto o convocou para acabar com a praga que se instalara em seu quintal - ou seria o seu quintal que se instalara sobre a praga? Não faz diferença, no final das contas...- oferecendo-lhe doces como forma de pagamento.

A essa altura o caçador de formigas já conhecia pesticidas mas não os utilizava por motivos éticos - seria o remédio a matar as formigas e não ele -, mas isso não significa que não utilizasse métodos genocidas. No quintal de sua tia, após rastrear os caminhos abertos pelas formigas no gramado, e através deles, descobrir o formigueiro em que se escondiam se decidiu por um ataque fulminante, e após regar o formigueiro com álcool ateou fogo no ninho da praga. (Era a primeira vez que utilizava essa método repetido em muitas outras oportunidades.) Para fizalizar seu serviço, cutucou o formigueiro com um galho para revelar em seu íntimo larvas indefesas e formigas operárias se revirando no fogo ardente.

Nesse e em muitos outros massacres promovidos pelo caçador de formigas utilizando fogo, a ira das formigas se ajuntou diante do horror de encontrar sua casa transformada em um inferno em brasa e cinza, e o que parecia improvável aconteceu; diferentes espécies de formigas formaram uma confederação buscando vingança e resistência contra o Inimigo.

Certo dia ao seguir um rastro deixado na mata de propósito pelas formigas, o caçador se encontrou em um pequeno vale, e viu surgir contra o sol, em seu entorno um exército formado por bilhões de formigas de todos os tamanhos, cores, e formatos. Lideradas pelas grandes formigas guerreiras conhecidas como Grilo Louco e Besouro Sentado a multidão de formigas avançou contra seu carrasco de outrora cobrindo cada milímetro de sua pele com dolorosas picadas. O caçador tombou, enorme, ao chão, causando estrondo e se debateu até não poder mais e finalmente silenciar. Sua pele foi tão picada que adquiriu uma textura rugosa e grossa, e também uma tonalidade escura, enquanto que as extremidades de seus membros fora devorada deixando de resto apenas pontas secas.

Até hoje pode ser visto por quem passa nesse sítio um tronco de árvore tombado no chão, cujos cotocos de galhos se assemelham a quatro membros humanos congelados enquanto se debatiam em agonia. Esse tronco é o que restou do caçador.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Prólogo


Eu era sonho e cem vezes acordei.
Na madrugada do dia 7 de agosto de 1989 o advogado criminalista Júlio Castilho adentrou os portões do complexo penitenciário que fica no distrito de Oirapuia – a trinta quilômetros da cidade de Mantosos –  para visitar seu cliente, o prisioneiro Joel Freire, acusado de homicídio.
O preso acordou de seu sonho em que era o advogado criminalista chamado Júlio Castilho para se surpreender sendo apenas um nome escrito na carta enviada por Maria Félix das Dores à sua irmã, Matilde Félix Fernandes, contando do amor que sentia por aquele homem que nunca tinha visto e só conhecera de ouvir falar.
Por mais que não se saiba nada sobre os eventos relatados acima, tomaram parte deles o carcereiro Antônio José das Flores e o carteiro Giusepe Farias, mas nenhum deles pode dar testemunho a favor da veracidade desses fatos uma vez que nem um nem outro tinham acesso às informações contidas nas cartas ou nos sonhos dos presidiários. Ele eram apenas os guardiões de um mistério que, apesar de não ter começo, tem seu fim planejado para o dia 13 de março de 2001

domingo, 6 de junho de 2010

Lá do alto só podia se ver o campo limpo. Mais de dez léguas caminhei para alcançar o lugar onde construí minha morada. Do lado de cá, atrás do morro Deus ergueu a floresta onde eu caço a madeira pra construir o curral das cabras.
Depois do inverno - quando já começava a esquentar - as cabras começaram a desaparecer; era a onça. Resolvi tomar uma atitude com temor da ira que despertaria o atentado contra ser tão majestoso.
Peguei meu rifle e saí com o sol ainda alto para me empuleirar numa posição boa. Passei dois dias e duas noite no alto da árvore esperando, e a onça não aparecia; astuta, pressentiu minha presença e se esquivou do perigo - pensei comigo.
Na terceira noite, com a lua alta, a onça apareceu com seu couro tigrado e antes que eu pudesse fazer mira ela me fitou dentro dos olhos lançando seu encanto felino sobre mim. Fiquei paralisado com o olhar que me atravessava, o rifle me escorreu pelas mãos e foi se perder nos arbustos abaixo da árvore. Ela se virou e seguiu seu caminho.
No dia seguinte, quando o sol nasceu, fui ver as cabras. Menos duas; sobraram só as carcaças. Não podendo defendê-las resolvi por me oferecer em sacrifício.
Na noite do mesmo dia caminhei floresta adentro desarmado para me render ao inimigo. A lua, ainda cheia, alumiava o caminho por entre as folhas das árvores. Senti que ela me farejava, mas bicho superior que é, não armou tocaia - me encarou sem artifício.
De novo lançou seu olhar assassino dentro de mim, me atravessando. Deu o bote e me derrubou no chão, mas não cravou suas garras em mim; ficou me encarando longamente e de perto senti seu hálito de carne fresca. Era doce. Enterrei meus dedos em seus cabelos e nos amamos ali, no chão da floresta, entre folhas secas e galhos.
Depois de saciada ela me devorou, e agora corremos juntos pelas pradarias e florestas caçando cabras e qualquer animal que a terra nos ofereça.