segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


Ele recebeu cartas de amor pela primeira vez na vida. Em sua sala pobre lia uma a uma com cuidado e satisfação. Amava de volta a cada palavra de afeto, a cada expressão de carinho. Sobre mesa de madeira com uma gaveta em baixo, bebia seu vermute, fumava seus cigarros, lia e relia suas cartas de amor. Até que bateram violentamente na porta, uma, duas, três, quatro vezes. Ele correu sobresaltado, acordado  à força de um sonho bom. Foi até a porta e verificou pelo olho mágico que eram eles. Eram cinco dessa vez, todos de terno cinza, gravata e chapéu. Enormes, fortes e gordos. Correu de volta até a mesa, pegou suas cartas e as queimou rápido com o isqueiro. Bateram denovo, e denovo, cada vez com mais violência. Na quarta vez estava pronto, foi correndo atender a porta mas um chute a escancarou violentamente espatifando seu nariz e arrancando-lhe um dente da frente.


Os homens entraram e começaram a espancá-lo. Socos, pontapés, atiravam-no contra a parede e miravam nas quinas para causar maior dano. E lhe gritavam: “Quem? Quem, filho da puta?” – ele resistia, nunca entregaria seu amor. Mais tortura e violência. Pegam na cozinha seus garfos e cravam na sua pele. O sangue jorra e ele grita alucinadamente. Pegam as facas e começam a retalhar seu rosto, sempre gritando: “Quem te ama? Quem te ama?”. Quando trazem da copa o ferro de passar e ele vê que o estão ligando na tomada não resiste mais e grita chorando: “Ninguém! Ninguém!”. Os homens de terno cinza se entreolham sem expressão, largam-no no chão e saem pela porta.


A ambulância vem e consertam-no para que ele possa trabalhar no dia seguinte.


No dia seguinte sai para o trabalho e cumprimenta os vizinhos tentando esconder a vergonha que sentia por seu rosto deformado e costurado. Na volta, passando pelo parque, escutou o canto de um passarinho. Com sua boca murcha, remendada e sem dentes tenta imitá-lo e estupefato, consegue. Tinha até mesmo a impressão de que sua boca quebrada, agora emitia melhor sons de passarinho do que palavras humanas. Conversava com o canarinho e o entendia, e a ave, enamorada veio pousar em seu ombro. Ele cumprimentou com um sorriso que parecia um bueiro sem dentes e levou sua nova paixão pra casa.


Quando voltava do trabalho passavam horas a conversar e sorrir um pro outro: ele, sem dentes – o pássaro, com um pio. Dava de comer na mão, o alpiste. Deitado de costas no chão, observava com cuidado seu vôo gracioso dentro do apartamento vazio com pouca mobília. Denovo, enquanto se encontrava em estado de graça, os homens de terno cinza espancavam a porta. Ele levantou-se num pulo. Abriu a janela e o passarinho se foi. Ele correu para abrir a porta e os homens, mais uma vez, entraram batendo. Com um empurrão o fizeram cair estatelado sobre a mesa que cedeu e quebrou. Usaram o pé da mesa como arma, ora a parte rombuda virava bastão a lhe acertar o rosto, ora a parte lascada virava lança a perfurar seu corpo. Enquanto gritava de dor ele só pensava em seu passarinho, tão amarelo, tão alegre e tão pequeno. Os homens de terno gritavam com ele: “Quem te ama, seu filho da puta? Quem te ama agora?” – e após toda a tortura ele murmurou com uma voz quase inumana: “Ninguém...”.


Agora ele apenas acenava com a cabeça, não conseguia mais falar. Ia e voltava do trabalho em silêncio. Seu corpo alquebrado fazia com que ele mancasse e se contorcesse enquanto andava. Sentava torto na posição que lhe fosse mais confortável.  Na volta do trabalho passando pela estrada encontrou uma flor. Ela lhe sorria graciosamente. Cintilava em suas cores, e dizia em uma voz doce só ouvida pelos mudos: “toma-me, toma-me”. Ele a pegou, vigiando por sobre os ombros, assustado, colocou-a com um tanto de terra em um saco plástico e carregou até sua casa. Lá chegando a retirou do saco e colocou-a em um vidro de conserva que tinha guardado. Colocou-a sobre a mesa e ficou a olhar. Durante horas nada passou, até que vieram os homens de terno cinza, gravata e chapéu. Ele não sabia como se livrar da planta. Resolveu correr e atirá-la na lata de lixo. Os homens invadiram a casa e o espancaram tanto, tanto, que logo ele estava quase fora de si. E como das outras vezes lhe gritavam: “Quem te ama? Quem te ama, seu merda?”. Com suas últimas forças ele emitiu um gemido, que foi interpretado pelos homens de terno cinza como um “Ninguém” e era isso mesmo que queria dizer.


Veio a ambulância e o levou, mas desta vez não tinha conserto. Ficou deitado numa cama de enfermaria esperando a hora de sua morte. Tinha apenas um olho, entre-aberto, a pequena bilha negra brilhava à luz fria do ambiente. Uma enfermeira se aproximou e olhou. Se reclinou sobre seu corpo e sussurrou no seu ouvido: "ninguém". Ele fechou seu olho e morreu.

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